quinta-feira, fevereiro 02, 2017

Mar me quer

(Mia Couto - Quando a prosa vira poesia...)

(Episódio Nº 7)















Pois, lhe digo, minha Dona. É uma pena a senhora andar por aí fatigando seus olhos pelo mundo. Devia era, logo de manhã, passar um sonho pelo rosto. É isso que impede o tempo e atrasa a ruga. Sabe o que faz? Estende-se aí na areia, oblonga-se deitadinha, estica a alma na diagonal.

Depois fica assim, caladita, rentinha ao chão, até sentir a terra se enamorar de si. Digo-lhe: Dona: quando ficamos calados, igual a uma pedra, acabamos por escutar os sotaques da terra.

A senhora, num certo momento, há-de ouvir um chão marinho, faz de conta é um mar sob a pele do chão. Aproveita esse embalo, Dona Luarmina. Eu tiro boas vantagens desses silêncios submarinhos. São eles que ma fazem adormecer ainda hoje. Sou criança dele, do mar.

- Lá criança, sim. Você há muito que esqueceu a idade.

- Sabe o que dava jeito? Era a gente os dois nos combinarmos. Está a perceber, Dona Luarmina?

- Ajuíze-se, Zeca.

- Faz conta somos verbo e sujeito.

- Já conheço essa sua gramática...

 - A senhora, minha boa Dona, nem sabe quanto enriquece minha retina.

Luarmina nem destroca resposta. E com razão. Sou um quem, eu? Um caçador de peixe que nem tem a quem contar suas aventuras. É verdade, Dona, não posso nem dar lustro nas minhas mentiras’ será que são mentiras? Se eu, que não testemunhei o que eu próprio relato, acabo me acreditando?

- O mar é que tem culpas – pois lá se esbatem os limites – tudo ali pode ser. No mar não há palavra, nem ninguém pede contas à verdade. Como dizia o velho Celestiano: onde sempre é meio-dia, tudo é nocturno.

Volto à mulher, Dona Luarmina. Nunca ninguém foi tão vizinho. Porque ela quando não me está nas vistas está-me nos sonhos. Sempre e sempre esta polposa e carnudona mulher.

O rabo foi quem mais lhe cresceu, cresceu mais que as nádegas. Em tempos, ela acendeu prontidões masculinas. Mas agora está apagada. Não para mim que me acendo em sua presença e ardo em sua ausência.

Ao fim de cada tarde, me encaminho para sua casa. Engraçado o seu lugarzinho, só tem traseiras. Quase como a Dona. Porque a gente para a contornar nem tem que dar a volta. Chega-se lá e estamos logo atrás. Sento-me num velho tronco e fico olhando a mulher desfolhando-se:

 - Mar me quer...

Depois, digo de mim para mim: quem dera eu meter a mão nos remetentes dela! Uma dessas noites, estendido na esteira, até sonhei que me apaixonei do assento dela e lhe desenrolava falas, as seguintes:

- Me deixe apalpar nas suas nádegas, é um instantâneo tão brevezito que a senhora nem precisa esquecer meu atrevimento.

 - Qual?

 - Como qual, Dona Luarmina?

 - Qual das nádegas?

  A arbitrária, Dona. Então a senhora não recorda as contas da geometria? – a soma dos factores é arbitrária?

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