terça-feira, janeiro 31, 2017

Mar me quer
( Episódio nº 5 )


















- Esse meu filho Agualberto, cabisburro como é, meteu-se no mundo dos brancos, nem abençoou o barco dele. Abandonou os antepassados? Castigo é esse.

Insisto com Dona Luarmina, ela não me peça lembranças. Eu quero matar o passado, essa mulher tem que me deixar cometer esse crime. Caso senão é o passado que me mata a mim.

 - Você, Zeca, tem raiva do passado, tem ciúme do futuro: vai viver só nos agoras?

Reformado das pescas, nem no presente tenho cabimento. Enquanto andava no mar, embalado em meu barco, eu não sofria o tempo. Porque essa ondeação era, afinal, uma dança. E a dança, já disse, é melhor maneira de fugir do tempo.

- Venha dançar Doninha...

- Dançar, eu, com este corpo?

Ela ri, envergonhada. Mas Luarmina não sabe: os que dançam ficam sem corpo. Esperta é a árvore que não mexe e dança a sombra dela no planeta inteiro.

- Dona Luarmina não se lembra a Maria Bailarinha?

E recordei essa moça do bairro, uma ajunta – brasas. Dançava que dava tontura no mundo, a homenzoada ficava zarolha do miolo. Os pés dela, todos descaloços, machucavam o chão, eram os pés de pilão mas nem poeira levantavam: a terra comovida parecia aprazida desse batimento.

Maria Bailarinha dançava a pedido e a moeda. Lhe atiravam os dinheiros e ela, de imediato, deflagrava seu corpo. Mesmo o padre Jacinto Nunes comentava baixinho para a sua batina:

 - Até Arquimedes havia de flutuar, Santo Deus me valha!

Aconteceu que, uma noite, ao roçar junto da fogueira, a capulana da dançarina se fez em chama. Maria Bailarinha não parou de dançar. O povo começou a gritar em aviso. O fogo em redor das vestes se adensou e ela não se detinha nem deixava que ninguém se chegasse.

Estava possuída pela vertigem, dançava já com a própria morte. Até que estancou, semelhando estar intacta e inteira. Quando a primeira mão lhe tocou ela se desfez em cinza, poeirinha esvoando na brisa.

- Lembra a Maria Bailarinha?

Nada. Luarmina não responde. Terá sequer me escutado? Não há modo nem maneira. Dona vizinha desconfia de desventuras dos outros.

Só lhe interessa as antiguidades de que fiz parte. E eu, para subterfugir, aldrabo umas lembranças, desenrasco uns pensamentos. Até um dia lhe perguntei:

 - Porque só minhas lembranças, as pessoais? 

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