(4º episódio)
- Quem é essa?
- Sou eu quando era
nova. Antes de chegar aqui ...
Me levantei, já em vias de tocar a foto. Mas ela, secamente, se
levantou e emendou a visão minha, vertendo a moldura sobre a mesa.
E ali ficou para os restantes dias aquele retrato deitado de
costas para a luz. Eu bem tentava espreitar, da janela, a imagem da sua antiga
beleza.
Em vão.
Restava-me a presente figura de Luarmina, gorda e engordurada.
A mulher, por razões de angústia, se deixara acumular, qui los sobre o peso. Eu entendo, uma boa maneira de
esconder a tristeza é cobrirmo-nos de carne. O sofrimento é fatal quando atinge
os ossos.
Chegada aí, a tristeza se apressa em virar esqueleto. Sábio é dar
cobertura ao corpo, intermediar gorduras fronteiras.
Às vezes, ainda relampeja nela alguma infância. Então, ela tenta
brincar-me, espicaçar-me uma ciumeira.
- Uma vez um homem me
chamou de dólingui.
- Dólingui?
- Dólingui ou darilingue?
Tenho muitos nomes bastante melhores que esses, não quer ouvir Dona vizinha?
- Não quero. Desculpe,
Zeca, mas agora já não quero. Me custa até ter um nome quanto mais muitos...
Já faz anos que rodopio à volta da viúva. Arrisco mesmo perder
plumagens nessa insistência. Contudo estou arrastando asa em nenhum chão,
minhas pernas só roçam aragens.
A estratégia é lhe contar minhas aventuras: invento feitos
passados em minhas atribulações marinhas. Mas não são aventuras que a fazem sonhiscar.
O que Dona Luarmina me solicita são exactas memórias. E isso é o
que eu menos quero. Não é que me faltem lembranças. Estão é espalhadas em toda
a minha substância, até nesse dedo que perdi nas fainas.
Meu corpo foi-se tornando um cemitério de tempo, parece um desses
bosques sagrados onde enterramos nossos mortos.
- Conte como foi, quero
as coisas que foram e como foram. Essas que nos põem saudades...
Saudades, em mim, nunca têm pressa. Demoram tanto que nunca
chegam. Só quando eu dança me liberto do tempo – esvoam as memórias, levantam
voo de mim. Eu devia era dançar todo o tempo, dançar para ela, dançar com ela.
- Me fale sobre o seu
passado.
Meu passado me pesa: minha infância morreu cedo, eu tive que
carregar esse peso morto em minha vida. Aos seis anos tomei lugar de meu avô no
barco, dois anos depois meu pai perdia o juízo e saia de casa, cego e louco. Minha
mãe, antes de morrer, me entregou na igreja. O padre português Jacinto Nunes me
educou em preceito de Deus e livro.
Mas eu queria era regressar ao mar e cedo toquei livro por rede.
Sempre entregando muito, recebendo pouco. Meu avô Celestiano culpava meu pai
dessa má sorte
0 Comments:
Enviar um comentário
<< Home