segunda-feira, janeiro 30, 2017

Mar me quer
(4º episódio)
















- Quem é essa?

- Sou eu quando era nova. Antes de chegar aqui...

Me levantei, já em vias de tocar a foto. Mas ela, secamente, se levantou e emendou a visão minha, vertendo a moldura sobre a mesa.

E ali ficou para os restantes dias aquele retrato deitado de costas para a luz. Eu bem tentava espreitar, da janela, a imagem da sua antiga beleza.

Em vão.

Restava-me a presente figura de Luarmina, gorda e engordurada.

A mulher, por razões de angústia, se deixara acumular, quilos sobre o peso. Eu entendo, uma boa maneira de esconder a tristeza é cobrirmo-nos de carne. O sofrimento é fatal quando atinge os ossos.

Chegada aí, a tristeza se apressa em virar esqueleto. Sábio é dar cobertura ao corpo, intermediar gorduras fronteiras.

Às vezes, ainda relampeja nela alguma infância. Então, ela tenta brincar-me, espicaçar-me uma ciumeira.

- Uma vez um homem me chamou de dólingui.

- Dólingui?

- Dólingui ou darilingue? Tenho muitos nomes bastante melhores que esses, não quer ouvir Dona vizinha?

- Não quero. Desculpe, Zeca, mas agora já não quero. Me custa até ter um nome quanto mais muitos...

Já faz anos que rodopio à volta da viúva. Arrisco mesmo perder plumagens nessa insistência. Contudo estou arrastando asa em nenhum chão, minhas pernas só roçam aragens.

A estratégia é lhe contar minhas aventuras: invento feitos passados em minhas atribulações marinhas. Mas não são aventuras que a fazem sonhiscar.

O que Dona Luarmina me solicita são exactas memórias. E isso é o que eu menos quero. Não é que me faltem lembranças. Estão é espalhadas em toda a minha substância, até nesse dedo que perdi nas fainas.

Meu corpo foi-se tornando um cemitério de tempo, parece um desses bosques sagrados onde enterramos nossos mortos.

- Conte como foi, quero as coisas que foram e como foram. Essas que nos põem saudades...

Saudades, em mim, nunca têm pressa. Demoram tanto que nunca chegam. Só quando eu dança me liberto do tempo – esvoam as memórias, levantam voo de mim. Eu devia era dançar todo o tempo, dançar para ela, dançar com ela.

- Me fale sobre o seu passado.

Meu passado me pesa: minha infância morreu cedo, eu tive que carregar esse peso morto em minha vida. Aos seis anos tomei lugar de meu avô no barco, dois anos depois meu pai perdia o juízo e saia de casa, cego e louco. Minha mãe, antes de morrer, me entregou na igreja. O padre português Jacinto Nunes me educou em preceito de Deus e livro.

Mas eu queria era regressar ao mar e cedo toquei livro por rede. Sempre entregando muito, recebendo pouco. Meu avô Celestiano culpava meu pai dessa má sorte

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