quinta-feira, janeiro 26, 2017

Mar me quer

(Mia Couto)

















Sou feliz só por preguiça. A infelicidade dá uma trabalheira pior que doença: é preciso entrar e sair dela, afastar os que nos querem consolar, aceitar pêsames por uma porção da alma que nem chegou a falecer.

Levanta, ó dono das preguiças.

E o mando da minha vizinha, a mulata Dona Luarmina. Eu respondo:

- Preguiçoso? Eu ando é a embranquecer as palmas das mãos.

- Conversa de malandro...

- Sabe uma coisa, Dona Luarmina? O trabalho é que escureceu o pobre do preto. E, afora isso, eu só presto é para viver...

Ela ri com aquele modo apagado dela. A gorda Luarmina sorri só para dar rosto à tristeza.

- Você, Zeca perpétuo, até parece mulher...

- Mulher, eu?

 - Sim, mulher é que senta em esteira. Você é o único homem que eu vi sentar em esteira.

- Que quer, vizinha? Cadeira não dá jeito para dormir.

Ela se afasta, pesada como pelicano, abanando a cabeça. Minha vizinha reclama não haver homem com miolo tão miúdo como eu. Diz que nunca viu pescador deixar escapar tanta maré:

- Mas você, Zeca: é que nem faz ideia da vida.

- A vida, Dona Luarmina? A vida é tão simples que ninguém a entende. É como dizia meu avô Celestiano sobre pensarmos Deus ou não Deus...

Além disso, pensar trás muita pedra e pouco caminho. Por isso, eu, um reformado do mar o que me resta fazer? Aprendi nos muitos anos de pescaria: o tempo anda por ondas. A gente tem é que ficar levezinho e sempre apanha boleia numa dessas ondeações.

- Não é verdade, Dona Luarmina? A senhora sabe essas línguas da nossa gente. Me diga, minha Dona. Qual é a palavra para dizer futuro?

Sim, como se diz futuro? Não se diz, na língua deste lugar de África. Sim, porque futuro é uma coisa que existindo nunca chega a haver. Então eu me suficiento do actual presente. E basta.

- Só eu quero é ser um homem bom, Dona.

- Você é um aldrabom.

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