Quando o Tempo nos Ultrapassa...
Há que convir, que para quem nasceu ainda no século XIX, primeiras décadas do século XX, sofreu em vida as maiores surpresas e transformações que qualquer outra geração já teve que enfrentar. E não me refiro propriamente às alterações do ponto de vista social e político, pois que, ao longo da história, sempre se registaram grandes mudanças quando os impérios caíam, se faziam guerras ou revoluções. Embora, em muitos casos, passados alguns anos, a tendência era a de repor as situações anteriores com personagens diferentes e tudo mais ou menos voltava ao mesmo.
Refiro-me, antes, às novidades que a ciência e a tecnologia trouxeram para o dia a dia da vida de todos nós e que mexeram profundamente nos nossos hábitos, condicionando a nossa maneira de viver e de pensar. Tudo no breve lapso que é o tempo de duração de uma vida humana. Foi como um dique que pressionado pelos avanços da ciência que há muito vinham ocorrendo, silenciosamente, não suportasse mais o sentido de oportunidade de uma sociedade que descobriria a volúpia do lucro e a adrenalina do risco empresarial - característicos do sistema capitalista e das leis inexoráveis da economia de mercado, e umas atrás das outras inundou-nos de máquinas que deram a volta às nossas cabeças e às nossas vidas:
-O automóvel, os electrodomésticos, a televisão, essa caixinha que se diz ter mudado o mundo, e mais recentemente os telemóveis, os computadores e a Internet.
Assim, na segunda metade do século XX, no último período de cinquenta anos, tudo isto entrou, mais ou menos de rompante pelas nossas casas, com o contributo, não direi da invenção mas da generalização do sistema de pagamento em prestações que, para além de ter permitido o enriquecimento dos Bancos, conduziu, igualmente, em muitos casos - infelizmente, ao endividamento das famílias.., mas esse já é outro assunto.
Para todos quantos nasceram nas décadas de 40 e 50 e de então para cá, todos estes maravilhosos objectos foram como que os seus brinquedos de infância, a começar pelas miniaturas de automóveis que fizeram as delícias da minha juventude, da mesma forma que os pequenos telemóveis são hoje peças indispensáveis na mão dos nossos jovens, não falando já dos que nasceram nas primeiras décadas do século passado e ainda muitos outros nascidos nos fins do século XIX quando, ainda por cima, a sociedade portuguesas era fortemente rural e analfabeta.
Foi um choque, uma agressão à sua capacidade de entendimento, um abanão nas suas estruturas mentais, uma “maldade” que lhes fizeram:
- 20 de Julho de 1969, Armstrong sai do módulo lunar, pisa pela primeira vez a lua e diz para todo o planeta que em directo o está a ver e a ouvir pela televisão: “um pequeno passo para o homem, um salto de gigante para a humanidade”.
Foi, naturalmente, o momento em que os espectadores da televisão mais indecisos ficaram entre o que mais admirar: o feito em si mesmo, a descida do homem à lua, ou a circunstância de estarem a vê-la ao mesmo tempo que ela acontecia como de um qualquer outro espectáculo servido em suas casas à hora do serão.
Nesse fim-de-semana fui de Almeirim para a Nazaré onde a família estava de férias, a banhos, e pelo caminho parei numa bomba de gasolina, das que tinham um Café onde as pessoas se juntaram para assistir ao evento:
- Não foi pacífico, contou-me o senhor da bomba enquanto atestava o depósito. Tinha havido briga, pois um determinado cliente afirmava que tudo aquilo não passava de uma grande mentira o que recolheu a concordância de uns e a discordância de outros, e daí às ofensas e insultos com murros e pontapés à mistura tinha sido “um ver se te havias”…; é o que acontece quando nos deixamos ultrapassar pelo nosso próprio tempo….
Mas o impacto da televisão foi qualquer coisa de inteligível quando, pela primeira vez, apareceu nas nossas aldeias, aos olhares pasmados dos habitantes cujas vidas se desenrolavam exclusivamente à volta da horta, do jumento e do porco e de algumas cabras e ovelhas quando as haviam.
As distracções aconteciam por alturas das festas anuais da aldeia e das aldeias próximas, ou de alguma feira mais virada para o negócio do gado e que ao longo dos anos tinha ganho importância, mas tudo quanto se ia lá encontrar já era conhecido dos anos anteriores mas a televisão…, senhores, coisa nunca vista, muito diferente daquelas imagens que aquele homem do cinema uma vez levou à aldeia e mostrou na sala onde ao sábado tinham lugar os bailes.
Eu tinha os meus 18 anos e assisti a tudo na aldeia dos meus avós, na Concavada, para lá de Abrantes, quando as aldeias regurgitavam de gente e todas as pessoas de idade eram nossos tios e tias como reconhecimento dos seus estatutos de respeitabilidade que os anos lhes conferiam.
O meu pai foi a primeira pessoa da aldeia a ter uma televisão, mesmo antes de qualquer uma das várias tabernas que à noite funcionavam como cafés.
Lembro-me perfeitamente dela, era alemã, marca SABA, rectangular e acastanhada. Foi posta num armazém que também servia de sala de jantar e à frente foram dispostos bancos corridos onde as pessoas que quisessem assistir, a troco de 5 tostões que o meu pai justificava destinarem-se à limpeza da sala, se iam sentando, à excepção da minha avó, a t’Lena Mela, que tinha direito a tratamento VIP numa cadeirinha de vime, daquelas que eram próprias para as pessoas se sentarem à lareira e que colocávamos logo na primeira fila mesmo em frente do aparelho.
Nunca me esquecerei da expressão do rosto da minha avó quando assistia às imagens da televisão que ela não via, antes admirava. Dizia sempre que gostava de ver tudo, as variedades com o Camilo de Oliveira, o teatro com a Dª. Palmira Bastos ou o cinema com o Sr. Vasco Santana, mas percebia-se que tinha uma especial deferência para com o Sr. Fialho Gouveia que, diáriamente, a olhava nos olhos e lhe lia as notícias, coisa que ela apreciava mais que os outros espectáculos.
Um dia a minha avó adoeceu porque embora sendo uma mulher saudável, de gripes e constipações ninguém estava a salvo, doentes ou saudáveis e, por isso, durante 15 dias, não ocupou o lugarzinho que lhe estava reservado em frente da televisão.
Finalmente, sentindo-se em condições, lá foi ocupar a sua cadeira porque antes da emissão começar já todos deveriam estar sentados e em silêncio. Da mira técnica passava-se ao hino da televisão e, de seguida, começava a programação a que eu assistia sempre ao lado da minha avó para a poder atender nalguma pergunta que me quisesse fazer, o que era raro.
A minha avó era daquelas velhinhas que gostava de passar despercebida. Em toda a sua vida habituou-se, talvez influenciada pela personalidade dominadora do meu avô, a ouvir e calar, no caso dela não como forma de submissão mas antes por ser a sua maneira de estar na vida, e eu adorava-a porque era a minha avó, porque era pequenina e pelos seus silêncios que me pareciam esconder um mundo que ela, com o seu quê de mistério, guardava só para si.
Mas nessa primeira noite, depois da ausência de todos aqueles dias, a minha avó parecia-me algo ansiosa, pelo menos não aguardava com a serenidade do costume o início da emissão.
De repente, enchendo-se de coragem e vencendo alguma espécie de pudor, puxou-me para ao pé dela e meio em segredo, confidenciou-me:
- “ Ah, o Sr. Fialho Gouveia naturalmente vai estranhar…há já quinze dias que não me vê”.
Não me lembro do que lhe disse mas a esta distância só espero e desejo que não lhe tenha dito nada.
Mais tarde, já depois de ter morrido, soube através de outras pessoas que ela, meio às escondidas meio à socapa, ajudava com comida as pessoas mais pobres da aldeia que a procuravam e aí veio mais uma razão para eu gostar da minha avó pequenina, como carinhosamente lhe chamava.
PS. Rui, esta “história” que corresponde rigorosamente à verdade e que gravei na minha memória para te poder contar, sei agora que foi para isso, é dedicada à tua bisavó pequenina que não me contava histórias como a outra, a avó grande, nem me pedia beijos mas por quem sempre senti imenso carinho.
Refiro-me, antes, às novidades que a ciência e a tecnologia trouxeram para o dia a dia da vida de todos nós e que mexeram profundamente nos nossos hábitos, condicionando a nossa maneira de viver e de pensar. Tudo no breve lapso que é o tempo de duração de uma vida humana. Foi como um dique que pressionado pelos avanços da ciência que há muito vinham ocorrendo, silenciosamente, não suportasse mais o sentido de oportunidade de uma sociedade que descobriria a volúpia do lucro e a adrenalina do risco empresarial - característicos do sistema capitalista e das leis inexoráveis da economia de mercado, e umas atrás das outras inundou-nos de máquinas que deram a volta às nossas cabeças e às nossas vidas:
-O automóvel, os electrodomésticos, a televisão, essa caixinha que se diz ter mudado o mundo, e mais recentemente os telemóveis, os computadores e a Internet.
Assim, na segunda metade do século XX, no último período de cinquenta anos, tudo isto entrou, mais ou menos de rompante pelas nossas casas, com o contributo, não direi da invenção mas da generalização do sistema de pagamento em prestações que, para além de ter permitido o enriquecimento dos Bancos, conduziu, igualmente, em muitos casos - infelizmente, ao endividamento das famílias.., mas esse já é outro assunto.
Para todos quantos nasceram nas décadas de 40 e 50 e de então para cá, todos estes maravilhosos objectos foram como que os seus brinquedos de infância, a começar pelas miniaturas de automóveis que fizeram as delícias da minha juventude, da mesma forma que os pequenos telemóveis são hoje peças indispensáveis na mão dos nossos jovens, não falando já dos que nasceram nas primeiras décadas do século passado e ainda muitos outros nascidos nos fins do século XIX quando, ainda por cima, a sociedade portuguesas era fortemente rural e analfabeta.
Foi um choque, uma agressão à sua capacidade de entendimento, um abanão nas suas estruturas mentais, uma “maldade” que lhes fizeram:
- 20 de Julho de 1969, Armstrong sai do módulo lunar, pisa pela primeira vez a lua e diz para todo o planeta que em directo o está a ver e a ouvir pela televisão: “um pequeno passo para o homem, um salto de gigante para a humanidade”.
Foi, naturalmente, o momento em que os espectadores da televisão mais indecisos ficaram entre o que mais admirar: o feito em si mesmo, a descida do homem à lua, ou a circunstância de estarem a vê-la ao mesmo tempo que ela acontecia como de um qualquer outro espectáculo servido em suas casas à hora do serão.
Nesse fim-de-semana fui de Almeirim para a Nazaré onde a família estava de férias, a banhos, e pelo caminho parei numa bomba de gasolina, das que tinham um Café onde as pessoas se juntaram para assistir ao evento:
- Não foi pacífico, contou-me o senhor da bomba enquanto atestava o depósito. Tinha havido briga, pois um determinado cliente afirmava que tudo aquilo não passava de uma grande mentira o que recolheu a concordância de uns e a discordância de outros, e daí às ofensas e insultos com murros e pontapés à mistura tinha sido “um ver se te havias”…; é o que acontece quando nos deixamos ultrapassar pelo nosso próprio tempo….
Mas o impacto da televisão foi qualquer coisa de inteligível quando, pela primeira vez, apareceu nas nossas aldeias, aos olhares pasmados dos habitantes cujas vidas se desenrolavam exclusivamente à volta da horta, do jumento e do porco e de algumas cabras e ovelhas quando as haviam.
As distracções aconteciam por alturas das festas anuais da aldeia e das aldeias próximas, ou de alguma feira mais virada para o negócio do gado e que ao longo dos anos tinha ganho importância, mas tudo quanto se ia lá encontrar já era conhecido dos anos anteriores mas a televisão…, senhores, coisa nunca vista, muito diferente daquelas imagens que aquele homem do cinema uma vez levou à aldeia e mostrou na sala onde ao sábado tinham lugar os bailes.
Eu tinha os meus 18 anos e assisti a tudo na aldeia dos meus avós, na Concavada, para lá de Abrantes, quando as aldeias regurgitavam de gente e todas as pessoas de idade eram nossos tios e tias como reconhecimento dos seus estatutos de respeitabilidade que os anos lhes conferiam.
O meu pai foi a primeira pessoa da aldeia a ter uma televisão, mesmo antes de qualquer uma das várias tabernas que à noite funcionavam como cafés.
Lembro-me perfeitamente dela, era alemã, marca SABA, rectangular e acastanhada. Foi posta num armazém que também servia de sala de jantar e à frente foram dispostos bancos corridos onde as pessoas que quisessem assistir, a troco de 5 tostões que o meu pai justificava destinarem-se à limpeza da sala, se iam sentando, à excepção da minha avó, a t’Lena Mela, que tinha direito a tratamento VIP numa cadeirinha de vime, daquelas que eram próprias para as pessoas se sentarem à lareira e que colocávamos logo na primeira fila mesmo em frente do aparelho.
Nunca me esquecerei da expressão do rosto da minha avó quando assistia às imagens da televisão que ela não via, antes admirava. Dizia sempre que gostava de ver tudo, as variedades com o Camilo de Oliveira, o teatro com a Dª. Palmira Bastos ou o cinema com o Sr. Vasco Santana, mas percebia-se que tinha uma especial deferência para com o Sr. Fialho Gouveia que, diáriamente, a olhava nos olhos e lhe lia as notícias, coisa que ela apreciava mais que os outros espectáculos.
Um dia a minha avó adoeceu porque embora sendo uma mulher saudável, de gripes e constipações ninguém estava a salvo, doentes ou saudáveis e, por isso, durante 15 dias, não ocupou o lugarzinho que lhe estava reservado em frente da televisão.
Finalmente, sentindo-se em condições, lá foi ocupar a sua cadeira porque antes da emissão começar já todos deveriam estar sentados e em silêncio. Da mira técnica passava-se ao hino da televisão e, de seguida, começava a programação a que eu assistia sempre ao lado da minha avó para a poder atender nalguma pergunta que me quisesse fazer, o que era raro.
A minha avó era daquelas velhinhas que gostava de passar despercebida. Em toda a sua vida habituou-se, talvez influenciada pela personalidade dominadora do meu avô, a ouvir e calar, no caso dela não como forma de submissão mas antes por ser a sua maneira de estar na vida, e eu adorava-a porque era a minha avó, porque era pequenina e pelos seus silêncios que me pareciam esconder um mundo que ela, com o seu quê de mistério, guardava só para si.
Mas nessa primeira noite, depois da ausência de todos aqueles dias, a minha avó parecia-me algo ansiosa, pelo menos não aguardava com a serenidade do costume o início da emissão.
De repente, enchendo-se de coragem e vencendo alguma espécie de pudor, puxou-me para ao pé dela e meio em segredo, confidenciou-me:
- “ Ah, o Sr. Fialho Gouveia naturalmente vai estranhar…há já quinze dias que não me vê”.
Não me lembro do que lhe disse mas a esta distância só espero e desejo que não lhe tenha dito nada.
Mais tarde, já depois de ter morrido, soube através de outras pessoas que ela, meio às escondidas meio à socapa, ajudava com comida as pessoas mais pobres da aldeia que a procuravam e aí veio mais uma razão para eu gostar da minha avó pequenina, como carinhosamente lhe chamava.
- E agora saber qual delas era?!
PS. Rui, esta “história” que corresponde rigorosamente à verdade e que gravei na minha memória para te poder contar, sei agora que foi para isso, é dedicada à tua bisavó pequenina que não me contava histórias como a outra, a avó grande, nem me pedia beijos mas por quem sempre senti imenso carinho.
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