segunda-feira, janeiro 07, 2008

José Carlos Ary dos Santos




José Carlos Ary dos Santos



Era o dia 18 de Abril de 1951, a manhã estava soalheira e a velhinha camioneta do Colégio de S. João de Brito, à data, o espaço com maior densidade de meninos ricos por metro quadrado da cidade de Lisboa, regressava ao ponto de partida depois de ter recolhido os alunos para mais um dia de aulas, muitas rezas e ponta pés na bola nos intervalos.

Eu era dos primeiros a embarcar juntamente com outro colega, o Jorge Manuel Barahona Vanzeler (há nomes assim, colam-se a nós e por cem anos que vivamos temo-los sempre na ponta da língua), menino de família que era acompanhado até à porta do solar onde vivia por uma criada impecavelmente fardada.

Lembro-me bem dele porque durante a viagem, desde os Caminhos-de-Ferro, a Sta. Apolónia, até ao Colégio, ao fundo da Alameda das Linhas de Torres, tínhamos muito tempo para conversar e contar histórias de livros de aventuras de que eu era grande apaixonado.

A viagem decorria sempre de forma pachorrenta. A nossa camioneta, provavelmente, ainda do tempo da última Grande Guerra, de formas arredondadas e que tratávamos por um nome carinhoso que, na minha memória, não resistiu ao tempo nem aos anos, só tinha que avançar entre a recolha de cada aluno sem o contratempo do trânsito que era então coisa desconhecida na nossa velha Lisboa.

Finalmente, abrandava, virava à direita, parava junto ao portão e motorista tocava o “clacson”, como então se dizia, até que um trabalhador da quinta o vinha abrir.


À nossa frente uma alameda e ao fundo, correndo aos saltos e agitando os braços na direcção da camioneta, um menino de calções, gordo e desajeitado, gritava:

-Morreu o Carmona, Morreu o Carmona, Vamos para Casa!

Era o Ary, inconfundível, exuberante, esfusiante, meio louco, que por morar ali perto chegava primeiro e soube logo da notícia pois as sobrinhas do Presidente tinham ido à capela do Colégio, ainda de madrugada, encomendar a Deus a alma do tio.

O Ary era uma explosão de energia, de irreverência que escandalizava e surpreendia quando saltava para as costas do padre, professor de português, rodeava-lhe o pescoço com os braços e o obrigava a correr imitando um cavaleiro.

O Ary era uma força da natureza e se alguém poderia escrever os versos que se seguem, pela sua genialidade, esse alguém só poderia ser o José Carlos Ary dos Santos que a si próprio se definia:

“Poeta de combate disparate
Palavrão de machão no escaparate
Porém morrendo aos poucos de ternura”



Poeta Castrado Não!


Serei tudo o que disserem
por inveja ou negação:
cabeçudo dromedário
fogueira de exibição
teorema corolário
poema de mão em mão
lãzudo publicitário
malabarista cabrão.
serei tudo o que disserem:
poeta castrado não.

Os que entendem como eu
as linhas com que me escrevo
reconhecem o que é meu
em tudo quanto lhes devo:
ternura como já disse
sempre que faço um poema;
saudade que se partisse
me alagaria de pena;
e também uma alegria
uma coragem serena
em renegar a poesia
quando ela nos envenena

Os que entendem como eu
a força que tem um verso
reconhecem o que é seu
quando lhes mostro o reverso:

Da fome já não se fala
-é tão vulgar que nos cansa-
mas que dizer de uma bala
num esqueleto de criança?

Do frio não reza a história
-a morte é branda e letal-
mas que dizer da memória
de uma bomba de napalm?

E o resto que pode ser
o poema dia a dia?
-Um bisturi a crescer
nas coxas de uma judia;
um filho que vai nascer
parido por asfixia?!
Ah não me venham dizer
que é fonética a poesia!

Serei tudo o que disserem
Por temor ou negação:
Demagogo mau profeta
Falso médico ladrão
Prostituta proxeneta
Espoleta televisão.
Serei tudo o que disserem
Poeta castrado não!


“ Ser poeta é escolher as palavras que o povo merece”

José Carlos Ary dos Santos


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Cavalo á Solta - Fernando Tordo (Ary dos Santos)





Ary dos Santos - 1977 - Muitos Homens na Prisão


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