segunda-feira, março 10, 2008

43 anos depois...


43 Anos Depois…


Março de 1965… o Paquete Vera Cruz aproxima-se lentamente do Porto da Rocha do Conde de Óbidos como se estivesse relutante em devolver ao país os soldados que levara dos braços dos familiares para a incerteza de um destino que se chamava: Guerra de Angola.

Ou talvez fossem pruridos de quem tinha a consciência pesada por devolver apenas uma parte da carga, ainda que a maior, que levara 27 meses antes.

Mas para uma mãe que não tenha recebido de volta o seu filho que lhe interessava aqueles que voltavam se entre eles não estava o seu, senão para aumentar a sua dor?

Em outros tempos teria sido necessário às mães esperar que todos saíssem até perderem a esperança de verem chegar o seu filho mas na década de sessenta do século XX as notícias da morte já chegavam rápidas e dispensavam as esperas inúteis.

A sorte das mães portuguesas desde que iniciámos as nossas aventuras pelas terras de além-mar esteve sempre ligada a uma praia ou a um porto na ânsia de um filho que tarda em chegar.

Lembro-me de dois soldados, meus camaradas de guerra, que numa emboscada em vez de terem sido mortos foram levados pelo inimigo, raptados e nunca mais soubemos deles.

Que teriam dito à família?

- O seu filho fugiu… desapareceu… passou-se para o inimigo…levaram-no…não sabemos se está vivo ou morto…

Que espaço terá ficado para uma réstia de esperança daquelas mães indecisas sem saberem ao certo o que aconteceu aos seus filhos?

Recordo essa lenta aproximação do Paquete Vera Cruz o suficiente para saber que não estava eufórico, nem contente, nem feliz, talvez aliviado… agradecido por estar ali, de novo, vivo e escorreito e se 27 meses antes não queria pensar naquilo que me poderia esperar numa situação que desconhecia por completo, também, naquele momento, não queria pensar no meu futuro.

Casado prematuramente, com um filho, sem casa, sem emprego, com um curso superior inacabado, restava-me a casa do meu sogro para uma situação humilhante de favor…

Que outras “guerras”, então, me esperariam?

Por isso, não queria pensar, estava a chegar de uma guerra, tinha direito a uma pausa.

Naqueles momentos, enquanto o Vera Cruz não atracava, tudo estava em suspenso, até as responsabilidades que me esperavam.

Depois, o impacto daqueles 27 meses, os últimos 15 em convivência pacífica com os Luenas, nas chamadas “terras do fim do mundo”, no distrito do Moxico, no Alto Zambeze, estava ainda demasiado presente dentro de mim.

África é como uma mulher que nos possui e mesmo quando já longe continuamos a senti-la, nos seus cheiros, nos seus contornos, na sua música e todo aquele espaço a perder de vista, à nossa volta, enche-nos a alma, dá-nos a noção da nossa dimensão nesta Terra a que pertencemos.

Lentamente, o Vera Cruz foi-se encostando ao cais e a agitação das pessoas que nos esperavam e o seu nervosismo quase que se podia sentir à distância de uma amurada.

Pensando bem, o tempo tinha custado mais a passar a eles do que a nós porque sempre foi assim entre aquele que parte e o que fica a aguardar a chegada do que partiu.

É ele que tem coisas para contar ou para silenciar, às vezes em definitivo, como aquele soldado que trazendo consigo uma doença venérea se suicidou atirando-se ao mar já à vista de Lisboa porque não suportou a ideia de um reencontro com a mulher naquela situação.

Quantas coisas não cabem dentro de uma guerra!

1 de Março de 2008…43 anos depois…Olhão, Churrasqueira o Franguinho.

Paro o carro no estacionamento em frente do Restaurante onde cerca de trinta senhores, alguns carecas, barrigudos, cabelos brancos, muitos acompanhados das esposas, filhos e netos, fizeram o favor de não de sentarem à mesa antes de eu chegar, eles que já não me reconheciam da mesma forma que eu tive de fazer um grande esforço, maior ou menor conforme os casos, para descobrir nas feições enrugadas e envelhecidas os jovens que tinha deixado 43 anos atrás.

Como foi bom abraçá-los ao fim de uma vida, como sentimos, na sinceridade daqueles abraços, como tinham sido importantes os 27 meses vividos em conjunto em Angola.

Como foi bom descobrir a existência de um novo laço de afinidade entre as pessoas que tem a ver com o passado, um certo passado…que hoje me parece ter sido, fundamentalmente, uma aventura de jovens, em cenários surpreendentes de beleza e exotismo, que teve riscos de vida, momentos de entreajuda, outros de cumplicidade mas muitos, mesmo muitos, de uma enorme naturalidade, sem stress ou preocupações, como foram todos aqueles que vivi no Lumbala, nas margens do Rio Zambeze, onde aprendi a nadar pela simples circunstância de que as águas subiram e eu fiquei sem pé no local onde me banhava com os meus camaradas.

O crocodilo que meses mais tarde me foi dado conhecer e que connosco partilhava aquela zona do rio, ainda que, apanhando sol, na outra margem, só veio provar que o mundo, sendo pequeno, dá para todos…mas a partir desse dia cada um no seu lugar, ele, no rio, nós fora dele.

Fica aqui a promessa de que estarei presente em todos os almoços anuais com os meus “irmãos” da guerra de Angola na esperança de que eles aconteçam ainda durante muitos anos e de que me seja dada a oportunidade de abraçar muitos outros que não estiveram presentes desta vez.

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