terça-feira, julho 15, 2008


O Espirito do Tempo

A relatividade que o tempo introduz na vida das pessoas em sociedade, a tendência natural para se viver o que acontece “hoje” esquecendo aquilo que foi “o ontem”, o curto espaço temporal em que decorre a vida humana, a própria lógica de que “o que passou, passou e o que interessa é o futuro”, retira-nos muito da perspectiva necessária para uma apreciação correcta e justa do mundo em que vivemos.

E estas circunstâncias dificultam, para o comum das pessoas, a avaliação da necessidade que todos sentimos de saber se, em termos globais, estamos melhor ou piores, se estamos a avançar ou a retroceder e em que sentido.

As variáveis de apreciação são muitas e a importância de cada uma delas tem a ver com aquilo que são as preocupações dominantes em cada momento, em cada local e em cada contexto.

Se perguntarmos a alguém no nosso meio se se regista ou não progresso a resposta, muito provavelmente, vai depender, em primeira análise, do que tem sido a experiência da sua própria vida em termos materiais e assim, o progresso, no sentido de que as coisas hoje estão melhores do que estavam ontem, ficará a depender da experiência de uma vida que correu bem ou não correu.

Mas se insistirmos com a pergunta em termos gerais, abstraindo do caso pessoal, a resposta surge, naturalmente, associada aos avanços tecnológicos, à rapidez com que o mercado é surpreendido pelo novo modelo de telemóvel, de ecrã de televisão ou das recentes descobertas para vencer esta ou aquela doença e, por estas razões, a resposta é, invariavelmente, positiva.

Não ponho em causa os avanços tecnológicos como indicadores de progresso, acima de tudo porque eles só são possíveis pelos avanços na ciência que é criativa e libertadora na medida em que resulta da inteligência humana.

Mas há um outro indicador que tende a ficar esquecido, não porque as pessoas não saibam dele ou desprezem a sua importância se confrontado directamente, simplesmente está diluído na nossa vida do dia a dia.

Refiro-me àquilo que é hoje o pensamento das pessoas relativamente às outras pessoas nossos semelhantes, simplesmente nossos semelhantes, e vamos alargar a comparação à data em que os meus avós, que eu conheci pessoalmente, nasceram, fins do século XIX, princípios do século XX.

Thomas Henry Huxley, biólogo britânico, falecido em 1895, um progressista e esclarecido liberal, dos principais defensores públicos da teoria da Evolução de Charles Darwin, escreveu em 1871 o seguinte:

- “Nenhum homem racional, conhecedor dos factos, acredita que o preto mediano seja igual, e muito menos superior, ao homem branco.

E, se isto for verdade, não é de modo algum crível, que uma vez removidas todas as peias e desfrutando o nosso prógnato parente de terreno neutro e de nenhum favor ou opressor, ele venha a ser capaz de competir com êxito contra o seu rival de cérebro maior e menor maxilar, num duelo que deve ser terçado com pensamentos e não à dentada. Os lugares cimeiros na hierarquia da civilização não hão-de ficar, seguramente, ao alcance dos nossos escuros primos”.

Abraham Lincoln era um homem avançado em relação à sua época, foi o 16º Presidente dos EUA e autor de vários pensamentos que, pela sua qualidade, ficaram na história:

- Podeis enganar toda a gente durante um certo tempo; podeis mesmo enganar algumas pessoas durante todo o tempo; mas não vos será possível enganar sempre toda a gente.

-Um boletim de voto tem mais força do que um tiro de espingarda.

- Quando pratico o bem, sinto-me bem; quando pratico o mal sinto-me mal. Eis a minha religião.

-O campo da derrota não está povoado de fracassos, mas de homens que tombaram antes de vencer.

-Pecar pelo silêncio, quando se deveria protestar, transforma homens em cobardes.

No entanto, quando os EUA se aprestam para eleger um presidente filho de pai negro e mãe branca é curioso ver o que este homem lúcido, esclarecido e avançado para a sua época, dizia, em 1858, num debate com Stephan A. Douglas:

Direi então que não sou, nem nunca fui, favorável a que se promova, seja de que maneira for, a igualdade social e política entre as raças branca e negra; que não sou, nem nunca fui, a favor de que os negros sejam jurados, nem que sejam habilitados a ocuparem cargos públicos nem a casar com brancos; e direi, alem disto, que há uma diferença física entre a raça branca e a negra que acredito que para sempre impedirá que as duas raças vivam lado a lado numa base de igualdade social e política.

E visto que assim não poderão viver, enquanto permanecerem juntas terá de haver uma posição superior e outra inferior, e eu, tal como outro homem qualquer, sou a favor de que a posição superior seja conferida à raça branca.

Estes dois homens, Huxley e Lincoln, se tivessem nascido e sido educados no nosso tempo seriam os primeiros a arrepiarem-se das suas posições e por isso, sendo eles dos espíritos mais liberais da sua época, imagine-se a maneira de pensar de um homem médio do seu tempo.

Mas estas profundas e radicais alterações na maneira de pensar dos homens relativamente a outros homens aconteceu, igualmente, em relação aos animais:

Quando os primeiros marinheiros desembarcaram na ilha Maurícia e viram os mansos dodós, a única coisa que lhes ocorreu foi matá-los à paulada não para se alimentarem deles já que, segundo diziam, a sua carne era intragável mas apenas porque pensaram que se eles estavam ali, indefesos, matá-los era a única coisa a fazer.

Um comportamento idêntico aconteceu mais recentemente com o extermínio do lobo da Tasmânia que ainda em 1909 tinha a cabeça a prémio.

Hoje a conservação da vida selvagem e do meio ambiente passaram a ser valores aceites com o mesmo estatuto moral outrora atribuídos a valores de natureza religiosa como o respeito pelo sabado ou entre os católicos, pelo domingo.

Os vertiginosos anos da década de sessenta ficaram na história pela sua modernidade aberta e progressista mas no seu início, um advogado de acusação no julgamento por alegada obscenidade do romance “O Amante de Lady Chatterley” ainda podia perguntar a um júri:

Aprovariam que os vossos filhos, as vossas filhas – porque as raparigas sabem ler, tal como os rapazes (?!) - lessem este livro?

Isto é livro que os senhores deixassem pousado lá em vossa casa?

É livro que gostassem que a vossa esposa ou criadas lessem?

Alguma coisa mudou e mudou em todos nós e é a esta mudança que verdadeiramente se pode chamar de progresso porque é uma mudança que vai numa direcção verdadeiramente consistente e não tem a ver com a religião, quando muito ela dá-se a despeito da religião e não por causa dela.

A língua alemã tem uma palavra «Zeitgeist» que significa “o nível de avanço intelectual e cultural do mundo numa determinada época” e a que também chamam o “espírito do tempo”… e a que velocidade este espírito do tempo se tem deslocado numa frente alargada por todo o mundo!

De onde vieram estas mudanças graduais e concertadas verificadas na consciência social?

Ritchard Dawkins não tem dúvidas de que não vieram da religião:


Alastram de uma mente a outra através de conversas, da leitura de livros, jornais, transmissões televisivas e radiofónicas e, hoje em dia, da Internet.

As alterações da sensibilidade moral são sinalizadas em editoriais, em debates na rádio, nos discursos políticos, no palavreado dos comediantes de stand-up, nos guiões das telenovelas, nas votações parlamentares ao criar as leis e nas decisões dos juízes ao interpretá-las.

É claro que o avanço não é uma rampa lisa, mas mais um perfil sinuoso dos dentes de uma serra com contrariedades locais e temporais como acontece agora por culpa da acção do governo Bush dos E.U.A. desde o início da presente década mas a uma escala mais longa a tendência para a progressão é inequívoca.”

Nesta marcha imparável, Dawkins, não tem dúvidas sobre o papel motriz que é representado por aqueles líderes políticos que, à frente do seu tempo, se erguem solidários e nos persuadem a prosseguir com eles: Gandhi, Luther King, Nelson Mandela, etc., não falando já de artistas do mundo do espectáculo, desporto e outras figuras públicas.

E depois temos, igualmente, os progressos na educação e no ensino e especialmente a crescente compreensão de que cada um de nós partilha uma humanidade comum com os membros de outras raças e com o sexo oposto – uma e outra, ideias profundamente não bíblicas, provenientes da ciência biológica e, sobretudo, da evolução.

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