segunda-feira, dezembro 29, 2008






A CASA ONDE NASCI



Sabes, Rui, eu penso que gostamos mais das terras onde nascemos quando, pelas circunstâncias da vida, as temos que deixar.

Então, se for uma grande cidade, com aquela dinâmica própria das grandes cidades, esse sentimento pela ausência ainda mais se acentua.

Furtamo-nos à poluição, ao trânsito, ao receio por uma maior insegurança e o que permanece é a imagem colorida feita saudade, um misto de sentimentos que mete ruas, praças, jardins, prédios… a nossa vida feita aos retalhos, um pedacinho neste lugar, outro além, naquele outro.

Memórias que nos aconchegam a alma e nos devolvem, de regresso, ao nosso banco do jardim à sombra daquela árvore, ao passeio da frente com a paragem do eléctrico e de repente, o polícia de turno que passa no seu andar calmo, mãos atrás das costas, seguro, tão seguro e confiante de si próprio que nos faz sentir aliados da autoridade.

Quase setenta anos de vida que não se somam em parcelas iguais, longe disso, a maior parte passaram incógnitas, não me lembro delas, não interessam, foram ram-ram, folhas de uma agenda que se rasgaram e perderam… procuro-as na minha memória e não as encontro.

À primeira vista parece um enorme desperdício, pensando melhor, foi mesmo um grande desperdício, o mesmo que enche a vida de tantas pessoas que, como eu, não deram conta de que o relógio estava a contar, minuto a minuto, hora a hora, todas exactamente com a mesma duração, todas sem retorno.

Mas a minha cidade, essa, está lá toda, não a tua, grande parte dela nem a conheço, não tem nada a ver comigo.

Lembras-te da inauguração da Expo / 98, das bichas intermináveis para os bilhetes de acesso, da euforia criada pelas expectativas de algo verdadeiramente novo, moderno, arejado?

Nunca me senti tão orgulhoso da minha cidade, comovi-me quando pela primeira vez entrei naquele espaço e me apeteceu correr ao encontro dos responsáveis de tudo aquilo que via ao meu redor no enquadramento mágico do estuário do Tejo, abraça-los e dizer-lhes obrigado.

Apeteceu-me recuar 50 anos e partir à desfilada por toda a Lisboa a gritar:

-“Venham cá agora, venham ver o meu bairro de operários, dos Armazéns de Vinho do Abel Pereira da Fonseca, da Fábrica do Material de Guerra, do Sabão, dos bilhetes de eléctrico a dois tostões destinados aos operários, do fim da linha dos eléctricos do Poço do Bispo, venham cá agora, seus vaidosos, convencidos, do Bairro de Alvalade, da Baixa, do Chiado…venham cá agora!”

Ah… se fosse possível misturar os tempos!

Eu tinha razões especiais:

- Quase sessenta anos antes, em 39, eu tinha nascido muito perto dali, na R. José do Patrocínio, ao Poço do Bispo, no fim da linha dos eléctricos, onde o condutor se apeava para mudar o “troley” e inverter a marcha, próximo daquele que viria a ser, desde cedo, o maior depósito de lixos tóxicos, algo a que à data apenas se chamava, prosaicamente, de porcaria e onde, 49 anos mais tarde viria a nascer, quase como por artes mágicas, a Expo/98, o maior, mais belo e surpreendente projecto de recuperação urbanística da cidade de Lisboa.

O Bairro de Marvila era, na década de 40, o local, por excelência, das tabernas e carvoarias, das fábricas, dos operários e dos copos de três, no tempo em que beber vinho era dar de comer a um milhão de portugueses.

O meu pai era proprietário de duas dessas tabernas e carvoarias, uma em Vale Formoso e outra na R: Direita de Marvila e ao Domingo, quando ganhava o C.O.L (Clube Oriental de Lisboa), aumentava a euforia e o negócio do vinho a copo.

Ainda se faziam sentir os efeitos da guerra terminada em 45, das senhas de racionamento, das dificuldades, não para mim que era filho de pai, então rico, usava calções, meias de soquete e chamava de mamã à minha mãe.

Em 1937/38, o meu pai alugou uma moradia quase no fim da Rua José do Patrocínio onde então desaguava, vindo de cima, por uma ruazinha estreita, o bairro chinês, o mais antigo bairro de lata da cidade de Lisboa.

A moradia, sobre elevada relativamente à rua, tinha um amplo terraço em toda a sua frente com uma dupla escadaria, a primeira até um portão de ferro pintado de verde que se abria para a outra até à rua.

O edifício era de dois pisos separados por uma escadaria interior muito bonita, em madeira exótica que se abria em leque ao chegar hall. A parede frente era toda em azulejos verdes com uma varanda ao meio a toda a largura com figuras de pedra a encimá-lo.

Que fazia ali aquela moradia? Quem era o seu dono? Por que razão a construíra ali, às portas do bairro chinês, encostada a uma ponte por onde o comboio ao passar fazia estremecer toda a casa?

Ah… não sei como vocês podem viver aqui!

Porquê? Eu não dei por nada, nasci com o barulho do comboio, já o ouvia quando estava na barriga da minha mãe.

Depois, via-os passar do meu terraço, eram todos pretos, à excepção de um que era branco, o “comboio de prata”, o rápido que ia para o Norte, levava pressa, de tão junto que passava da minha casa até parecia que a ia atropelar.

Ainda hoje os ouço no seu matraquear característico, especialmente quando iniciavam a marcha na estação de Braço de Prata, ali próxima.

Pou-ca-te-rra…Pou-ca-te-rra… Pou-ca-te-rra…Pou-ca-te-rra….ÚÙÙÙ…ÙÙÙÙ e lá vinha ele resfolgando como que a tomar balanço para a próxima corrida até à nova estação.

O pior eram aqueles que não paravam na estação e passavam já embalados…era coisa de doidos, abanava tudo, os copos à mesa estremeciam, os talheres tilintavam e o meu pai, depois do comboio passar e ficar audível dizia para a minha mãe:

- Mimi, passa-me o pão por favor.

Um dia, um homem resolveu caminhar a pé pelo meio da via e prendeu-se-lhe a bota… sei que era uma bota porque veio parar ao meu terraço com o pé lá dentro.

Não me lembro de quantas noites não consegui dormir…foi a única vez em que me zanguei com os comboios.

O meu vizinho que morava do outro lado da ponte, o Mário Martins, o da Valentim de Carvalho, que descobriu tudo o que era cantor em Lisboa e arredores, a começar pelo Marco Paulo, uns anitos mais velho que eu, dizia-me, apurando o ouvido para o comboio que lá vinha:

- Aposto que o número do comboio que lá vem é o… ainda hoje estou para saber como é que ele acertava sempre, seria um truque ou já a manifestação da sua extraordinária sensibilidade musical?

Lembro-me, que ele vivia no desejo nostálgico de ter um instrumento musical, não posso precisar qual, mas o negócio da pequena mercaria do pai, nesse tempo, era de patacos e a fiado, como já vai sendo hoje nas mercearias de bairro, e além disso, oriundo lá do norte, não era sensível à vocação musical do filho.

Por isso, o meu amigo Mário, olhava para o piano que a minha mãe tinha em casa um pouco à maneira de quem olha, mesmo de perto, aquilo que lhe estava tão distante.

Recordo que o meu pai alugou esta casa por 400 mil réis, o dobro do que a minha mãe pagava à cozinheira, e um quarto do que pagava à “criada de fora”, comidos e dormidos, já se vê, que sendo já dinheiro para a época, devia ter alguma coisa a ver com a frustração do senhorio que nunca se deve ter entendido com o barulho do comboio.

Devia de andar pelos meus 50 anos quando regressei de novo àquele local e àquela casa.

Bati à porta e disse à senhora que me atendeu:

- Nasci nesta casa há 50 anos, vivi nela os meus primeiros 10, nunca mais cá voltei, importa-se que dê uma vista de olhos?

- Faça favor, isto agora é um infantário, esteja à sua vontade.

Dei meia dúzia de passos, olhei ao meu redor, não reconheci nada, agradeci e vim embora…tinha-me esquecido de levar os meus olhos de criança!

Recentemente, viu-o de soslaio da janela do comboio, um pouco antes de chegar a Santa Apolónia, pareceu-me estar já em perfeita degradação. Podem destruí-la por completo porque sem os meus olhos de menino não me serve para nada.

Para a revisitar não tenho necessidade de lá voltar, nem sequer preciso dela, todos os seus mais pequeninos recantos e pormenores continuam indeléveis na minha memória.


Nota:

Dedico este texto ao meu sobrinho Rui.

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