quarta-feira, julho 15, 2009


TIETA DO AGRESTE

EPISÓDIO Nº 183





DA IMAGEM DE TIETA REFLETIDA NO ESPELHO EM NOITE DE ANO NOVO



O enterro do velho Zé Esteves, a conversa com Perpétua sobre a herança, com o mesquinho complemento do relógio, a pungente cena com Elisa reflectem-se na face de Tieta, sentada diante do espelho, limpando a pele, sozinha no silêncio da casa e da rua. Partiram todos para o Te Deum na Matriz.

O mundo de Agreste, aparentemente simples e pacífico, revela-se mais difícil e confuso do que o mal afamado universo do meretrício onde ela se movimenta entre putas, rufiões, cáftens, gigolôs, patroas de rendevus, desde a partida na boleia do caminhão há vinte e seis anos.

Mais fácil defender-se e comandar no Refúgio dos Lordes. Lá, os sentimentos, como os corpos, estão expostos. Aqui, a cada passo, ela tropeça em simulação, engano e falsidade; ninguém diz tudo o que pensa e demonstra por inteiro seus desígnios; todos encobrem algo por interesse, medo ou pobreza. Mundo de fingimento e hipocrisia, em acirrada luta por ambições tacanhas, minguados interesses.

Às nove horas, ao toque do sino da igreja, toque de recolher para a maioria da população, a luz do motor extinguiu-se, voltando no entanto a funcionar às onze, iluminando a cidade para a passagem do ano, as comemorações da Igreja e da Prefeitura, o Te Deum e os fogos. Quando as filhas de Modesto Pires ainda eram solteiras, vindas em férias do colégio de freiras na Bahia, havia baile em casa do dono do curtume. Hoje, unicamente na pensão de mulheres de Zuleika Cinderela a festa se prolonga pela madrugada, iniciando-se após o Te Deum e o foguetório pois as raparigas, sendo filhas de Deus e cidadãs da comuna, comparecem à Igreja e à Praça para render graças ao senhor e aplaudir com entusiasmo o capenga Leôncio, coadjuvado pelo moleque Sabino, no fulgor do espectáculo pirotécnico, com rojões, morteiros e foguetes, encerrando-se aquela modesta maravilha com uma única porém sensacional chuva de prata.

Depois do jantar juntaram-se visitas na varanda: coronel Artur Tapitanga, dona Milú, dona Carmosina, o vate Barbozinha, além de Elisa e Astério, do inconformado Peto, de meias e sapatos, roupa limpa, e de Ascânio Trindade, cuja presença de tão constante perdera a condição de visita. À luz das placas conversaram sobre o Velho; o coronel e dona Milú recordaram acontecidos antigos, dona Carmosina bordou comentários inteligentes. Esgotado o assunto principal, falaram da chuva e do bom tempo ou seja: comentaram a prenhez de Sátima Farath, filha de seu Abdula e dona Soraia, levantinos de ferrenhos hábitos feudais, mantendo filha única e atractiva trancada a sete chaves e de repente descobrindo-a de barriga inchada de quase quatro meses, produto das últimas chuvas de Setembro, e se referiram ao seu próximo casamento com Licurgo de Deus, modesto e retinto empregado para todo o serviço do armarinho, sem outro dote além da escura beleza de homem, de riso claro, da doçura dos modos, sendo o inesperado matrimónio um jubiloso acontecimento do bom tempo de verão. Exercendo a arte subtil de comentar a vida alheia, esquadrinharam o armarinho procurando saber onde se dera o facto principal, se em cima ou embaixo do balcão, entre botões, agulhas, dedais e fitas, remexeram nas finanças dos Farah e saudaram com simpatia a sorte do moleque Licurgo, a comer quibe cru em prato de ouro, imagem de dona Carmosina encerrando a discussão sobre o local do feito.

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