quarta-feira, junho 16, 2010


DONA
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS

EPISÓDIO Nº 147



Amigas e comadres davam razão ao pai, louco e cego ao ver a filha prenha, sua honra comida com champanhe. Todas, menos dona Dinorá, sempre a favor dos ricos. “Essas negrinhas se metem na cama dos patrões para depois fazerem chantagem”. Quanto a dona Flor, só guardava memória dos detalhes escabrosos, só retinha em seu peito e em seu degradado pensamento a visão da meninota nos braços do calhorda, a gemer de gozo, satisfeita. O resto, aquele extenso panorama de horrores, era-lhe no fundo indiferente, por mais que se declarasse com a cólera das comadres.

Foi-se reduzindo assim seu tempo de recato interior. No entanto, quem a visse movimentando-se nas aulas, ao fogão, ou com as amigas de um lado para o outro, em compras, em visitas (jamais indo, porém, a festas defensas a seu estado de viúva) não imaginaria a batalha a travar-se no seu íntimo, a louca bacanal de suas noites, sua consumição. Porque ninguém mais respeitável e honesta, em sua boca jamais se ouviu nome de homem pronunciado com interesse, sequer em referência casual a seus atributos e virtudes. E, se antes zombara de pretensos candidatos, em galhofa com as comadres, agora nem tolerava ouvir seus nomes, morta de verdade por novo matrimónio. Viúva assim tão discreta e recatada, nem naquele bairro nem na cidade toda, e se no mundo houvesse alguma não seria mis composta e honesta; exemplo das viúvas, dona Flor.

Por fora o recato em pessoa. Calma de semblante e retirada, parecendo a própria mansidão; por dentro ardendo de desejo, em “fogo consumida”, como Oxum, seu orixá. Ah!, Dionísia, se soubesses como o fogo de Oxum queima as noites de tua comadre e seu corpo moreno, seu pelado ventre, lhe mandarias dar um banho de folhas ou um marido.

Cada vez mais inquieta, dona Flor, suas noites em sonho ou em solidão. Quando conseguia dormir tranquila uma noite inteira, ah!, era uma bênção de Deus! Quase sempre não durava seu repouso senão um começo de sono sossegado. Logo os sonhos se erguiam e levavam para seu degredo de obscenidades, dona flor rolando no colchão, opresso o peito, doído o ventre. Cada vez menor seu tempo de dormir e descansar, crescendo a cada noite o de sonhar e desejar, o de ranger os dentes. “A matéria predominando sobre o espírito” segundo lhe ensinou a culta propaganda yoga.

Impúdica, devassa, onde nos seus sonhos seu recato de viúva? Nunca fora assim: mesmo casada, na cama com o marido, jamais se entregara fácil, sendo preciso ele cada vez vencer-lhe a pudicícia, romper o decoro de sua casta natureza. Pois agora, nos sonhos, ela saía a se oferecer a uns e a outros; e por vezes nem viúva era, e sim mulher-da-vida a vender-se por dinheiro. Quanta vergonha, ai; já lhe acontecera acordar no meio da noite e pôr-se em pranto sobre as ruínas de seu ser antigo, aquela dona
Flor pudica em volta em seu pejo e seu lençol. Em luxúria envolta agora, na desfaçatez do sonho, voraz e cínica rameira, loba uivante, gata em cio, puta.

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