sábado, julho 31, 2010


DONA
FLOR


E SEUS
DOIS

MARIDOS




Episódio Nº 186


Não lição de cosmografia, pedante e ingénua, não, galanteio ardente, sua maneira de coibir a timidez e lhe ofertar a magia da noite e seu amor. Dona Flor, toda de estrelas e ciência recoberta, a cabeça reclinada no peito no peito do doutor, já mais em sossego e no prazer de tais conhecimentos, quis saber:

- Vénus não é também a deusa do amor? Uma sem braços?...

Bem outra coisa desejava lhe dizer: “com sua luz ela fulge sobre nosso leito, é nossa boa estrela; não tenhas medo meu querido, não me ofenderás se tomares de mim com doido ardor, se arrancares num afã, num arrebatamento, esse vestido que Rosália me mandou do Rio, se me puseres nua coberta só de estrelas, e se em mim montares e partirmos, égua e garanhão por esse campo de mangueiras e cajus, põe esse mar de canoas e saveiros”.

Mas cadé coragem para lhe dizer?

Sorrindo, o doutor lhe apertou a mão num gesto ousado, sua mão tremia. “Sim, era a deusa do amor da mitologia grega, e a escultura célebre, criação do génio clássico…

Dona Flor de novo constatou como igualmente a ele faltava intrepidez para ser bruto e louco, para romper o muro a separá-los. Tamanho homem de saber tamanho e não sabia como tomá-la e possuí-la. Quanto a ela, ah!, Teodoro, por mais deseje, não lhe compete a mínima iniciativa. Já quase ultrapassara os limites do devido, pois de direito não pode a esposa oferecer-se à excitação de seu esposo sem passar por sem-vergonha, por concorrer com mulher da vida, por descarada. Compete ao marido, meu Teodoro.

Aos trancos e barrancos lá ia ele em seu esforço. Já lhe tendo dado um colar de astros por adorno, lhe ofertava agora a riqueza dos monopólios desse mundo e, de quebra, a luta dos povos contra os trustes:

- Dizem que por aqui há um lençol subterrâneo de petróleo, imenso, uma riqueza tal, bastante para tornar nosso povo poderoso…

Rios de petróleo, torres, perfurações e poços, tudo aos pés de dona Flor; que não lhe daria ele nessa noite de esponsais?

- Também já ouvi dizer… Foi tio Porto, ensinava por aqui…

Dona Flor descansou a cabeça no peito do marido. Lá fora, perfumada de jasmim, permanecia a noite, a mesma a acompanhá-los no táxi a caminho da casa-grande do doutor Pimenta e de dona Flor nas lonjuras de São Tomé de Paripe. Noite de lua num céu próximo e fulgurante onde estrelas nasciam umas das outras, anónimas, mas logo eram classificadas pela polimorfa erudição do farmacêutico (só dona Gisa para emparelhar com ele na sabedoria):

- …bem aqui em cima, sobre os jenipapos, as Três Marias…

A lua cheia rasgava a escura e densa água do mar, negrume de petróleo, mar de golfe em tranquila mansuetude. Lanternas saveiros, cometas errantes e vermelhos no rumo de plantações de cana verde e de tabaco, nas margens do rio Paraguaçu, onde agonizam vilas e cidades de antigamente.

Um mar interior, macio de bonança, morno e quieto, e a brisa suave entre a jaqueira e o pé de fruta-pão. Dona Flor considera a beleza do luar cobrindo as águas, as areias, as canoas, os saveiros. Mar de repouso e paz.

Não o mar oceano de barra fora, feroz e perigoso, de vagas e correntes submarinas, de enganosas marés; livre mar de solta ventania, de loucos temporais, mar de tempestades – desdobrando-se no caminho das pequenas casas ilegais de Itapoã, onde o amor irrompe em aleluia. Mar de violência desatada; não esse adocicado perfume de jasmim, mas o de
maresia, ardido cheiro de
sargaços, de algas e ostras, gosto de sal. Por que lembrar-se?

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