sábado, setembro 04, 2010

DONA FLOR
E SEUS DOIS
MARIDOS

Episódio Nº 216


Entenda-se, aliás: naquela definição violenta – “tudo uma porqueira” – não incluía dona Gisa a música dita popular, expressão do povo, ardente e pura.

Aos sambas e às modinhas, aos “spirituals”, aos cocos e às rumbas tinha respeito e estima e era fácil ouvi-la a assassinar, com seu terrível assento, a letra do último samba em moda. Não tolerava, isso sim, a fatuidade dessa música sem força e sem carácter, feita, em sua opinião, para o mau gosto da classe média, incapaz de sentir a beleza e de se comover com os grandes mestres. Comovia-se dona Gisa, ao ouvi-los em gravações de qualidade, à meia-luz em casa dos amigos alemães, naquelas noitadas de tanto gozo espiritual (e, de lambugem, um bom drinque e algumas anedotas.

Doutor Ives abria a boca, num alarme: quando pernosticismo, gringa metida a sebo! Onde ficavam as óperas – me diga, professora – Il Rigoleto, O Barbeiro de Sevilha, O Palhaço, O Guarani, do nosso imortal Carlos Gomes – ouça, dona Gisa, nosso brasileiro, nasceu em Campinas – a levar o nome da pátria amada aos palcos do estrangeiro por entre aplausos? Onde ficavam essas maravilhas, com suas áreas, seus duetos, seus barítonos e seus baixos, suas prima-donas? Se isso não era música erudita, então o que era? Por acaso sambas e rumbas, modinhas e tangos?

Ora, siá dona Gisa, se assunte, porque nessa matéria (como de resto em tudo mais) doutor Ives é sumidade. Alteando a voz e o gesto de vitória ele pergunta: onde ela encontrará algo de mais refinado do que uma boa opereta como a Viúva Alegre, A Princesa dos Dólares ou o Conde de Luxemburgo?

Assente em bases concretas, a cultura musical do clínico resultava do conhecimento vivo – quando estudante, indo ao Rio numa caravana, assistira das torrinhas do Teatro Municipal, com entradas de favor, a algumas óperas montadas e cantadas pela Grande Compagnia Musicale di Napoli. Deslumbrou-se com os espectáculos, com as melodias e as vozes dos barítonos e das sopranos, dos tenores e dos contraltos. Não os ouvira em discos de vitrola, dona Gisa, e, sim, de corpo presente, vendo-os no palco a brilhar no esplendor de seu génio, a Tito Schippa, a Galli Cursi, a Jesus Gaviria, a Bezanzonui, cantando a Traviata, a Tosca, Madame Butterfly, Il Schiavo (também do nosso Carlos Gomes, minha cara). Vira depois todos os maravilhosos filmes de cinema – não perdera um só – com as melhores operetas interpretadas por Jan Kepura e Martha Egerth, por Nelson Eddy e Jeanette MacDonal. Por acaso os vira dona Gisa? Todos, sem perder nenhum?

Em seu entusiasmo, doutor Ives trauteava trechos das árias mais conhecidas e até ensaiou um passo de balé. Com ele era no duro, não fazia por menos, não lhe viessem com os discos e com lérias, pois no tocante a cultura musical não ficava a dever a ninguém…

- Isso, cultura! – dona Gisa estendia as mãos ao céu, ofendida não em seus brios mas em lídimos conceitos – Cultura é outra coisa, seu doutor, mais séria… Também a música, a verdadeira, a grande… Muita outra coisa.

Dona Norma, requisitada para árbitro, mantinha-se neutra, confessando:

- Não entendo nada… Saiu do samba, da marcha, da música de Carnaval – que essas eu sei todas… - sou zero-noves-fora-zero… Ópera, vi uma, quando aqui esteve catando níqueis a Companhia Billoro-Cavallaro já quase sem artistas, uma tristeza. Nem era uma ópera inteira, só uns pedaços da Aída.

Também fui… - marcou outro ponto o doutor Ives.

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