quarta-feira, setembro 15, 2010


DONA
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS


Episódio Nº 225



Um esmoler às três da tarde, em ponto, sob o sol, cruzava a rua:

- Esmola para um pobre cego das duas vistas…

A melhor esmola era a visão divina na janela: mesmo com o perigo do desmascaramento, arrancando os óculos negros, patolava os dois olhos de uma vez e arregalados naqueles dons de Deus, bens da polícia. Se o secreta o perseguisse e o metesse no xadrez, sob a acusação de impostura, de falsificação da mendicância, ainda assim se daria o ceguinho por bem pago.

Apenas doutor Teodoro, todo engravatado, na pompa de seu traje branco, nem erguia os olhos para o céu exposto na janela. Cur4vando a cabeça num cumprimento de fina educação, tirava o chapéu a dizer bom-dia e boa tarde, indiferente à plantação de seios que dona Magnólia cercara de rendas para obter maior efeito, para abalar aquele homem de mármore, para destruir aquela fidelidade conjugal, insultuosa. Só ele, o morenaço, o bonitão, com certeza um pé-de-mesa, só ele passava sem deixar transparecer o impacto, a alegria, o êxtase, sem ver, sem olhar sequer aquele mar de seios. Ah!, era demais, ultraje revoltante, insuportável desafio.

Monógamo, garantia dona Dinorá, conhecedora de todos os particulares da vida do douto. Aquele não era de trair mulher, não o tendo feito sequer com Tavinha Manemolência, mulher pública se bem restrita em sua freguesia. Dona Magnólia, porém, tinha confiança em seus encantos: “minha cara cartomante, tome nota, escreva o que lhe digo, não existe homem monógamo, nós o sabemos, eu e vosmicê. Espie na bola de cristal e se ela for de confiança lhe mostrará o doutor na cama de um castelo – o de Sobrinha, para ser exacta – tendo a seu lado, toda pimpona, essa sua criada Magnólia Fátima das Neves.”

Não se abalara o doutor com os olhos de desmaio da vizinha, com sua voz de convite a responder-lhe o cumprimento, com seios plantados na janela, crescendo à sombra e ao sol no desejo dos meninos, no gemer dos velhos? Ria-se dona Magnólia, tinha outras armas, ia empregá-las, entrar em ofensiva imediata.

Assim, certa tarde de mormaço, um peso no ar pedindo brisa e cafuné, agrados de cama e cantigas de ninar, dona Magnólia transpôs os batentes da farmácia, levando na mão uma caixa de injecções para a nova tentação de Santo António. Vestida de verão com um trapo de fazenda leve, ia mostrando riquezas ao passar, num desperdício.

- Pode o doutor me aplicar uma injecção?

Doutor Teodoro media nitratos no laboratório, a bata amidoada a fazê-lo ainda mais alto e a dar-lhe certa dignidade científica. Com um sorriso ela lhe estendeu a caixa de injecções. Ela a tomou, depositando-a sobre a mesa, e disse:

- Um momento…

Dona Magnólia ficou de pé a contemplá-lo, cada vez lhe agradava mais. Um tipão, na boa idade, de muita força e valentia. Suspirou, e ele, deixando os pós e a fórmula, para a vizinha ergueu os olhos:

- Alguma dor?

- Ah!, seu doutor… - e sorriu como a dizer-lhe ser de cotovelo sua dor e ele a causa.

- Injecção? – examinava a bula – Hum… Complexo de vitaminas…

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