quinta-feira, setembro 30, 2010

DONA FLOR
E SEUS DOIS
MARIDOS


Episódio Nº 238


“Mas, imagine só, Rosália, o que foi que a maluca da gringa deu a Teodoro, uma camisa toda cheia de mulheres nuas, você já pensou no doutor vestindo um trem desses? Educado como ele é, não disse nada, até agradeceu sem se zangar mas a camisa eu guardei no fundo da minha gaveta para ele não ficar toda hora vendo e com raiva de Gisa que é assim mas é muito boazinha”. Quem estava doente sem sair de casa era dona Dinorá, “imagine o sofrimento dela, com as juntas emperradas, um reumatismo brabo, sabendo as coisas por terceiros”. Ficou reduzida a botar cartas para as visitas e a prever desgraças para todo o mundo, numa irritação. Até a dona Flor ameaçou, consultando os naipes: “me disse para tomar cuidado pois não há bem que sempre dure, nunca vi boca de tanta praga, t’esconjuro.”

Tirante essas coisas rotineiras, nada havia a contar: “nada acontece, sempre a mesma vidinha sem novidade”. O doutor pretendera comprar a casa onde moravam mas um dos herdeiros da drogaria decidiu vender a sua parte e ir-se para o Rio. Doutor Teodoro consultara dona Flor: “o que lhe parecia mais certo e razoável: adquirir a casa ou a parte na farmácia?” Ao lhe perguntar argumentara: aquela parte lhe garantiria o controle da firma, sócio maioritário. Quanto à casa mais tarde a comprariam, quando pudessem. O proprietário não tinha outra saída senão vender, a renda do aluguel era ridícula.

Em verdade, doutor já formara opinião e decidira como melhor agir, e se demandava conselho a dona Flor fazia-o por gentileza e boa educação: “o tempo passa e o doutor não muda nada a mesma polidez, o mesmo sistema, o mesmo trato, sempre igual, um dia atrás do outro. Posso dizer o que vai acontecer a cada instante, no passar das horas, e sei cada palavra, porque hoje é igual a ontem.”

Transcorrendo assim a vida, suave e plácida, nesse lento e invariável ritmo, como temer mudança, como levar a sério as previsões da cartomante de meia-tigela e entrevada, mais amadora em seus baralhos e em suas adivinhas do que o próprio comendador Adriano Pires ao violoncelo?

Até que ela, dona Flor, não levaria a mal se algo sucedesse, um imprevisto qualquer a romper a rotina dos dias igualmente felizes e pacatos. “É até um pecado, minha irmã, falar assim quando se tem a vida que eu tenho, depois de haver comigo o pão amargo, mas a mesma coisa todo o dia cansa, até quando a gente está no bom e no melhor, Aqui pra nós lhe digo, mana saudosa, que mesmo com essa vida tão feliz, por todos invejada, por vezes me dá uma agonia, tão sem pé e sem cabeça, difícil até de explicação, um não-sei-quê… Natureza ruim dessa sua irmã que não sabe apreciar como devido o quanto mereceu do céu sem para tanto ter merecimento: vida tão tranquila e um bom marido.”

Naquela ocasião, tendo ido num domingo à missa na Igreja de Santa Tereza, como sermão de dom Clemente (“Por que, Senhor, a paz não habita o coração dos homens?”), após o ofício dirigiu-se à sacristia na intenção de convidar o sacerdote para o primeiro aniversário do seu consórcio com o doutor Teodoro. Não seria uma festa, propriamente: reuniam apenas os amigos íntimos em torno a um cálice de licor e uns doces, comemorando, ao mesmo tempo, a escolha do boticário para segundo-tesoureiro da recém-eleita directoria da Sociedade Bahiana da Farmácia.

- Lá estarei, com todo o prazer, para felicitá-los por esse ano de harmonia conjugal, esse exemplo de união abençoada por Deus…

Retirou-se dona Flor, e o padre de marfim, numa autocrítica a seu sermão um tanto pessimista, sorriu alegre: eis ali alguém, dona Flor, cujo coração era uma morada da paz, eis um ser humano satisfeito e feliz com
sua vida, desmentindo seu sermão de sombras e de dúvidas.

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