quinta-feira, dezembro 23, 2010

DONA

FLOR

E SEUS

DOIS

MARIDOS


Episódio Nº 301




Assim naquele domingo: donaire e formosura, feitiço e dengue, dona Flor ostentava o colar de turquesa, presente de Vadinho. Nada mudara, domingo idêntico a tantos outros na tarde de plantão. Tudo igual: a rua, a gente, o doutor e ela, dona Flor. Ninguém a apontara a dedo, ninguém se apercebera de nada, ninguém a reconhecera adúltera e culpada, nem mesmo dona Dinorá, metida a adivinha e peçonhenta. O mesmo sol de antes, a mesma chuva (agora fina poeira d’agua), as mesmas conversas e os mesmos risos, a consideração inalterada. Pensara que iria ser um fim do mundo, na rua e dentro dela: que ia romper seu coração, antes a morte. Em vez disso, tudo igual: como a gente se engana nessa vida…

Do balcão, despachando uma freguesa, doutor Teodoro lhe sorri, todo besta e fátua ao vê-la tão formosa. Ela lhe sorri também e de relance lhe espiou a testa: nem sinal de chifres. Que tolice, dona Flor, que significa esse gosto repentino pela farsa?

Entre ela e o doutor nada se alterara, tampouco. Apenas a memória da manhã na cama persistia a fazer mais íntima aquela tarde de plantão. Também persiste a lembrança da noite no sofá, amor de gula e violência, a cavalgada impúdica sob a chuva, aleluia de Vadinho. Na tarde serena, na paz tranquila de Domingo, o aguilhão do desejo morde o seu corpo. Quando virá ele de novo, o doidivanas, o tirano, o maligno, o tirano, o manhoso, o seu primeiro? À noite, concerteza, quando o doutor, cansado do trabalho, dormir o sono dos justos e felizes.

Naquela doce paz, boa esposa solidária com o segundo esposo cumprindo seu dever a ajudá-lo no plantão, e à espera da noite libertina com o primeiro, um pensamento de súbito a inquieta. Comadre Dionísia dissera que jamais Vadinho voltaria a perturbá-la, amarrado para sempre nas cordas do despacho. Meu Deus, e se assim fosse?


Mãe Octávia Kisimbi rezou o corpo de Pelancchi e tanto ele como Zulmira tomaram banho de folhas com sabão de coco. As penas dos galos sacrificados foram postas nas encruzilhadas dos caminhos. Mãe Otávia defendeu Pelancchi pelos quatro cantos e pelas sete portas e lhe disse para esperar os resultados. Mas o rei do bicho tinha pressa, foi bater em outras freguesias.

A vidente Aspásia apenas desembarcara do Oriente, trazida nas auras da manhã, e mal vestira sua farda (um tanto gasta) de adivinha, quando recebeu a visita de Pelancchi, dinheiro grosso em sua frente. Se bem a pitonisa não fosse sensível ao tinir do ouro – vivendo da graça dos céus e em jejum total dos prazeres deste mundo – como recusar as pelegas, quando, ao demais, se lhe exigia trabalho tão difícil?

Lançando mão do “sistema da ciência espiritual em movimento”, patente sua, exclusiva, partiu para o além e gemeu palavras roucas, debatendo-se como se a quisessem estrangular. Não era espectáculo dos mais aprazíveis, e o professor Máximo Sales, de natural céptico, um cabeça dura, teve vontade de ir-se embora. Mas Pelancchi mantinha-se firme, numa tensa expectativa, segurando a mão trémula de Zulmira, a quem o sobrenatural afectava enormemente depois que os invisíveis demonstraram interesse por seus peitos, quadris (e quem sabe? por mais). Zulmira, secretária e confidente, leal ao lado do patrão, conforto dos aflitos, e que conforto!

Babando desfeita e de olho arregalado, a sacerdotisa do Oriente retornou das esferas siderais e, ao fitar Pelancchi, seu corpo estrebuchou, um grito rasgou-lhe o peito magro – tábua rasa, triste de se ver. Pediu mais dinheiro, ah!, era um trabalho extenuante, tudo escuro de breu nos círculos do além, tão negra a sina de Pelancchi!

Site Meter