domingo, março 13, 2011

HOJE È
DOMINGO
(Da minha cidade de Santarém)



No passado sábado, dia 5 deste mês de Março, estive no almoço anual com os camaradas que fizeram comigo a guerra colonial de Angola de Novembro de 1962 a Março de 1965.

Ao longo de 13 anos, de 1961 até 1974, centenas de milhar de compatriotas meus embarcaram no Cais da Rocha de Conde Óbidos, em Lisboa, para uma realidade completamente desconhecida que era combater nas matas de Angola, Guiné e Moçambique.

Jovens preparados à pressa, recrutados por todo o país, de norte a sul, foram enviados para África, ao que lhes disseram, para defender a pátria.

Como “perdemos” essas guerras, retirámos desses territórios e a pátria continua, percebemos, mais tarde, que o argumento foi forçado. Não era tanto a defesa da pátria, talvez antes a salvaguarda de interesses, na melhor das hipóteses, na fase inicial, a protecção de compatriotas nossos que lá viviam, especialmente depois daquele horrível massacre de civis no qual, brancos e negros, velhos e crianças foram mortos à catanada, em Março de 1961, da responsabilidade da UPA (União dos Povos de Angola).

Nestes almoços de confraternização, como o meu, existirão provavelmente dezenas por todo o país, a problemática da guerra já passou completamente à história. O que se recorda, o que se revive, foram as experiências por que um grupo de jovens, durante 27 meses, viveram num ambiente estranho, hostil, adverso, perigoso, fatal para alguns… mas marcante.

Sentimos, passados todos estes anos, que ficámos irmanados… foi tudo demasiado forte, intenso, desenquadrado das vidas normais que levávamos nas nossas terras, para que laços indestrutíveis não se tivessem criado.

A carta que a seguir transcrevo e que dirigi aos camaradas que estiveram comigo neste almoço, poderia ser enviada a todos os meus compatriotas de outros almoços idênticos ou, mais generalizadamente, a todos os que não indo a almoços de confraternização passaram, no entanto, pela experiência dessa guerra.


Almoço Anual de Confraternização da Companhia de Caçadores Nº 388 do Batalhão 381

5 de Março de 2011

Camaradas e Amigos

Há dias, revolvendo numa gaveta fotografias há muito guardadas, encontrei entre elas, rigorosamente dobrado em quatro, um papel com aspecto de envelhecido que, pela cor e textura já quase parecia um papiro. Os anos deram-lhe um ar de dignidade, de documento importante, daqueles que se guardavam no cofre, tipo escrituras ou certidões, quando certas pessoas, poucas, ainda tinham cofre em casa.

Os papéis que ficam muitos anos intocados envelhecem com respeitabilidade, não se amarrotam, não enrugam, não engelham, apenas a patine do tempo a conferir-lhes distinção e respeito.

Desdobrei-o cuidadosamente. Ao cimo e ao centro um carimbo de tinta desbotada do Regimento de Infantaria 16 e por baixo, em letra impressa:

- “Passa à disponibilidade, desde amanhã…” e agora em letra manuscrita: “o Alf. Miliciano Joaquim Luís…”; em baixo, antes da assinatura do Comandante, “Quartel em Évora, 3 de Março de 1965.”

Olhei-o, sorri e continuei a lê-lo: “O portador deste documento deverá apresentá-lo quando lhe for exigido pela autoridade militar ou civil, em substituição da sua caderneta militar…” caramba, quase me deu vontade de fazer continência!

Voltei a dobrá-lo com o mesmo cuidado com que o desdobrei e pensei que afinal a nossa vida são memórias, memórias que se vão avolumando à medida que os anos passam e ficamos gratos quando alguém ou alguma coisa as recupera para nós.

Podem os corações continuarem a bater no peito mas se as memórias se apagam nas nossas cabeças, não passaremos de mortos-vivos:

- Cais da Rocha do Conde Óbidos, Vera Cruz, a escadaria do portaló salpicada de militares a descê-la de saco às costas, beijos e abraços intermináveis… e as imagens continuam a desfilar no pensamento como naqueles tempos das máquinas de passar fitas a preto e branco e o filme chegava ao fim.

Uma página tinha-se virado pondo fim a um capítulo das nossas vidas, outros se iriam seguir… hoje conhecemo-los, então, ao descer os degraus da escada do portaló, apenas projectos vagos, mais ou menos óbvios em que não queríamos pensar naqueles momentos.

Para trás, tinha ficado a “nossa guerra”:

- Úcua, Piri, Pango, Quibaxe, Fazenda Rainha Santa, Maria Fernanda, Cazombo, Lumbala, Caripande,… os medos de quando éramos “maçaricos”, o sobressalto dos tiros, o desgosto dos camaradas mortos na emboscada na estrada do Pango, o matraquear dos motores dos Unimogs nas apavorantes viagens pelas picadas ladeadas de verde onde sobressaíam milhões de olhos negros que nos espiavam… (que o diga o nosso camarada “Cu de Alfinete”: “Ó meu alferes, tive tanto medo que não me cabia no cu a cabeça de um alfinete!”).

O emaranhado das florestas a Norte, os grandes espaços do Leste, a serenidade do povo Luena e a beleza das suas jovens a quem terão chamado as “espanholas de África”. O soba, bem lá ao Sul, de bigodes entrelaçados, o ritmo dos tambores nos batuques de sábado à noite regados a copos de hidromel e acompanhados de furtivas escapadelas para o mato.

Os banhos da jangada para o rio Zambeze, as caçadas nas planícies a perder de vista, de bússola na mão para o caminho de regresso, sempre já de noite fechada, atravessando o rio com o jeep e o atrelado carregado de animais.

Os bifes de palanca e gnu ao pequeno almoço para dar vazão á carne que a geleira a petróleo não aguentava e, vejam lá, até passeios de barco a motor com piqueniques ao Domingo, na ilha, bem a meio do rio, como um grupo de amigos que, na verdade, éramos.

… e ali estávamos de novo, vinte e oito meses depois de termos embarcado naquele mesmo navio, naquele mesmo porto, agora para o último dispersar.

Cada um de nós dirá hoje se aquela foi ou não a grande “aventura das nossas vidas” mas, meus amigos, a que propósito nos iríamos nós reunir todos os anos num almoço, trocando abraços, conversas, cânticos se não fosse mesmo por termos vivido em comum a maior “aventura das nossas vidas?”

Compreendo aqueles que a quiseram esquecer: muitas das recordações não foram boas, algumas foram mesmo muito más, outros as tiveram bem piores, mas existirá, por acaso, “aventura” feita de rotinas insípidas, boas e agradáveis? …que também as tivemos!

É o “fio da navalha” que confere às situações a marca de “aventura”: a dor, o cansaço, a sede dentro daquele capim húmido que nos submergia e abafava, o perigo, o medo, a incerteza, o desconhecido, o receio da morte, o contar dos dias no calendário pondo uma cruzinha em cada um… e finalmente o regresso, o acordar de novo para a vida, aquela que nos esperava no Cais da Rocha do Conde de Óbidos, depois do último degrau da escada do portaló do navio Vera Cruz, na nossa terra ou nas terras da emigração, para a verdadeira aventura da vida.

Cais da Rocha de Conde Óbitos, e o papel, então, muito branquinho, sem a patine do tempo:

- “Passa à disponibilidade, desde amanhã o Alferes Miliciano Joaquim Luís

Évora, 3 de Março de 1965.”


Um abraço, saúde para todos e até para o ano.


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