sábado, outubro 01, 2011

TEREZA


BATISTA


CANSADA


DE


GUERRA




Episódio Nº 219



Os borrifos matinais haviam lavado o céu, a varição mantivera-se contínua, domingo luminoso e ameno. Na mesa do jantar, Tereza sorri: sereno dia de descanso a suceder à inesquecível noite da véspera, de quermesse, roda gigante, noite fantástica, absurda, a mais feliz da sua vida.

Inesquecível não só para ela, também para o doutor. Após o jantar saem para a caminhada até à ponte e o velho porto. Emiliano comenta:

- Há muitos anos não me divertia tanto como me diverti ontem. Você tem o dom da alegria, Favo de Mel. Foi, por assim dizer o começo da última conversa. Na ponte, Tereza relembra o simulado tropeção do doutor na rua, de volta da quermesse, deixando cair e espatifar-se o abajur de contas pintadas, declamando-lhe cómico epitáfio: descansa em paz, rei do mau gosto, para sempre adeus! Mas Emiliano já não ri, de novo amofinado, a face retesa, a cabeça posta em aflições e desgostos.

Mergulha o doutor num silêncio pesado; por mais Tereza se esforce para trazê-lo de retorno ao riso e à despreocupação, nada obtém. Rompera-se o curso da alegre inconsequência da véspera a prolongar-se até ao começo da noite daquele domingo de Maio.

Resta uma última trincheira, a cama. O amor sem peias, o embate dos corpos, o desejo e o prazer, o deleite infinito.

Para arrancá-lo da opaca tristeza, para lhe aliviar o fardo. Ah! se Tereza pudesse tomar a si tudo quanto o amola e deprime. Ela está acostumada com o ruim da vida, comeu do lado podre com fartura. O doutor sempre teve quanto desejou e como quis, os demais na obediência e no respeito, na sujeição às suas ordens, envelheceu gozando o bom da vida. Para ele é mais difícil. Na cama, quem sabe, dentro de Tereza, se apaziguará.

Mas, transposto o portão, Emiliano anuncia:

- Quero conversar contigo, Tereza. Fiquemos aqui, na rede um pouco.

Na quinta-feira ele estivera a pique de abrir o coração: ao falar do primeiro casamento, ao referir-se a Isadora. O fardo fez-se insuportável mesmo para o orgulho do doutor, chegou a hora de dividir a carga, aliviar o peso. Tereza anda para a rede: estou pronta, meu amor. Emiliano diz:

- Deita aqui junto de mim e escuta.

Só em certos momentos ele a trata por tu, quando quer tornar mais funda e patente a intimidade estabelecida entre eles. Tu, minha Tereza, meu Favo-de-Mel.

Ali, no jardim das pitangueiras, a lua desmedida de Estância escorrendo ouro sobre as frutas, o aroma do jasmim-do-cabo evolando-se na brisa, a voz irada, ele tudo lhe contou. Disse da decepção, do fracasso, da solidão da sua vida familiar. Os irmãos, uns incapazes, a esposa, uma infeliz, os filhos, um desastre.

Desperdiçara a vida no trabalho insano em benefício da família Guedes, dos irmãos e do povo deles, mais ainda de seu povo, esposa e filhos. O doutor Emiliano Guedes, o mais velho dos Guedes da Usina Cajazeiras, o chefe da família.

Concebera esperanças, arquitectara planos, sonhara sucessos e alegrias, e a essas cálidas esperanças, a esses ardentes planos e magníficos sucessos, a essas previstas alegrias, sacrificara mais do que a vida, sacrificara o resto do mundo, todas as demais pessoas, inclusivé Tereza.


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