domingo, novembro 13, 2011

HOJE É


DOMINGO






E porque hoje é Domingo nada melhor que oferecer-vos um texto do grande escritor António Lobo Antunes (com supressões) sobre a Velhice.

Entre nós separa-nos a genialidade da sua escrita e liga-nos a idade, as raízes da nossa cultura, a experiência da guerra em Angola e especialmente os hábitos da nossa infância: o espelho redondo que tinha numa das faces a fotografia da Yvonne de Carlo em fato de banho, o canivete, que no meu caso era uma pequena navalha igual à que era usada pelos homens da aldeia dos meus avós, na Beira-Baixa, onde passava todas as minhas férias. Não era, como ele, do Benfica, mas sabia igualmente de cor os nomes dos seus jogadores ... Ah, e também usava uma fisga como objecto pessoal. Tenho ainda presente, como se fosse ontem, o único passarinho que matei com ela… espalmei-lhe a cabeça. Como me senti orgulhoso com o troféu e a minha pontaria, um Robin Hood! Todos os restantes passarinhos a que apontei conseguiram fugir incólumes. Finalmente, e tal como ele, também me continuo a sentir um menino cujo envelope se gastou…


A VELHICE
(Por António Lobo Antunes)

"Devo estar a ficar velho: as Paulas Cristinas têm mais de 20 anos, os Brunos Miguéis já vão nos 15, as Kátias e as Sónias deram lugar a Martas, Catarinas, Marianas. A maior parte dos polícias são mais velhos do que eu. Comecei a gostar de sopa de Nabiças. A apetecer-me voltar mais cedo para casa. A observar, no espelho matinal, desabamentos, rugas imprevistas, a boca entre parêntesis cada vez mais fundos. A ver os meus retratos de criança como se fosse um estranho. A deixar de me preocupar com o futebol, eu que sabia de cor os nomes de todos os jogadores do Benfica (…). A desinteressar-me dos gelados do Santini que o Dinis Machado, de cigarrilha nas gengivas achava peitorais.

Se calhar, daqui a pouco, uso um sapato num pé e uma pantufa de xadrez no outro e vou, de bengala, contar os pombos do Príncipe Real que circulam, de mãos atrás das costas como os chefes de repartição, em torno do cedro. Ou jogar sueca, com colegas de boina, na Alameda Afonso Henriques de manilha suspensa no ar, numa atitude de Estátua de Liberdade. (…). Quando der por mim, encontro o meu sorriso na mesinha de cabeceira, a troçar-me, num copo de água, com 32 dentes de plástico. Reconhecerei o meu lugar à mesa pelos frasquinhos dos medicamentos sobre a toalha, que me farão lembrar as bandeiras que os exploradores antigos, vestidos de urso como os automobilistas dos tempos heróicos, cravavam nos gelos polares. (…)

Devo estar a ficar velho. E no entanto, sem que me dê conta, ainda me acontece apalpar a algibeira à procura da fisga. Ainda gostava de ter um canivete de madrepérola com sete lâminas, saca-rolhas, tesoura, abre-latas e chave de parafusos. Ainda queria que o meu pai me comprasse na feira de Nelas, um espelhinho com a fotografia da Yvonne de Carlo, em fato de banho, do outro lado. Ainda tenho vontade de escrever o meu nome depois de embaciar o vidro com o hálito. (…).

Pensando bem (e digo isto ao espelho), não sou um senhor de idade que conservou o coração de menino. Sou um menino cujo envelope se gastou."


Obrigado por este texto, António Lobo Antunes.


(click na imagem do antigo quartel dos Bombeiros no centro da cidade de Santarém, hoje emparedado. Acredito que já não fosse funcional, o espaço interior seria apertado mas este painél de azulejos identificativo conferia-lhe toda a dignidade...)

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