terça-feira, março 20, 2012

GABRIELA

CRAVO

E

CANELA



Episódio Nº 52





Da Arte de Falar da Vida Alheia




Nacib arregaçou as mangas da camisa, examinou a freguesia. Quase toda ela constituída àquela hora por gente estranha, de passagem na cidade devido à feira.

Havia também alguns passageiros do Ita, em trânsito para os portos do norte; era ainda cedo para os fregueses habituais. Segurou Bico Fino, tirou-lhe a garrafa da mão:

- Que quer dizer isso? Era uma garrafa de conhaque português – Onde já se viu? – Andava com o empregado para o balcão – Servir a esses tabaréus conhaque verdadeiro… – Tomava de outra garrafa, o mesmo rótulo, a mesma aparência, apenas nela misturavam-se o conhaque nacional e o português, receitas do árabe para aumentar os lucros.

- Não é para eles não, seu Nacib. É para o pessoal do navio.

- E daí? São melhores do que os outros?

O conhaque puro, o vermute sem mistura, o Porto e o Madeira sem baptismo eram reservados para a freguesia certa, os de todos os dias, os amigos. Não podia afastar-se do bar, os empregados começavam logo a meter os pés pelas mãos, se ele não estivesse presente acabaria perdendo dinheiro. Abriu a caixa registadora. Aquele iria ser um dia de muito movimento! De muitos comentários também.

A viagem de Filomena não lhe causava apenas prejuízo material e canseira. Tirava-lhe também a paz de espírito, impedia-o de voltar-se por inteiro para as múltiplas novidades, para tanta coisa a comentar quando os amigos chegassem. Novidades a granel e, na opinião de Nacib, nada mais gostoso – só mesmo comida ou mulher – do que comentar novidades, especular sobre elas.

Falar da vida alheia era a arte suprema, o supremo deleite da cidade. Arte levada a incríveis refinamentos pelas solteironas.

“Está reunido o Congresso das Línguas Viperinas” dizia João Fulgêncio ao vê-las em frente à Igreja na hora da bênção. Mas não era na Papelaria Modelo, onde João Fulgêncio imperava entre, livros, cadernos, lápis, canetas, que se reuniam os “talentos” locais, línguas tão afiadas quanto as das solteironas?

Ali e nos bares, junto às pontes do cais, nas rodas de pocker, em toda a parte: falava-se da vida alheia, glosavam-se os acontecimentos. Uma vez foram dizer a Nhô-Galo andarem comentando suas aventuras em casas de mulheres. Respondeu com sua voz fanhosa:

- Meu filho, não me importo. Sei que falam de mim, fala-se de todo o mundo. Apenas esforço-me, como bom patriota, para lhes dar assunto.

Era a diversão principal da cidade. E como nem todos possuíam o bom humor de Nhô-Galo, por vezes havia bofetadas nos bares, exaltados a exigir explicações, sacando revólveres.

Não era, assim, uma arte gratuita, sem perigo. Naquele dia havia muito a comentar: primeiro o caso da barra, assunto complexo, envolvendo uma diversidade de detalhes, tais como o encalhe do Ita, a vinda do engenheiro, a actividade de Mundinho Falcão (“que é que ele está querendo?, perguntava o coronel Manuel das Onças), a violenta irritação do coronel Ramiro Bastos.

Só esse complicado assunto bastaria para apaixonar. Mas como esquecer o casal de artistas, a mulher formosa e o tal Príncipe de meia-tigela, com sua cara de rato esfomeado?


(Click na imagem das mulheres a falarem da vida alheia, "conversa de comadres" na opinião de Nacib, o maior prazer da vida a seguir às mulheres e à comida...)

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