sexta-feira, junho 22, 2012


GABRIELA
CRAVO
E
CANELA

Episódio Nº 131


Do fogo e da água com jornais e corações.

Alguns felizardos conseguiram retirar das cinzas molhadas exemplares quase perfeitos do jornal. O que o fogo não consumira empapara-se de água, trazida em latas e baldes por operários, empregados e voluntários de boa vontade, para apagar a fogueira. As cinzas espalhavam-se pela rua, voavam à brisa da tarde, um cheiro de papel queimado.

Trepado numa mesa transportada da redacção, o Doutor, pálido de revolta, a voz embargada, discursava para os curiosos amontoados ante o Diário de Ilhéus:

 - Almas de Torquemada, Neros de fancaria, cavalos de Calígula, apetece-lhes combater e vencer ideias, derrotar a luz do pensamento escrito com o fogo criminoso de incendiários, obscuros obscurantistas!

Algumas pessoas aplaudiam, a multidão de moleques em festa clamava, batia palmas, assobiava. O Doutor, ante tanto entusiasmo, o “pince-nez” perdido no paletó, estendia os braços para os aplausos, vibrante e comovido:

 - Povo, ó meu povo de Ilhéus, terra de civilização e de liberdade! Jamais permitiremos, a não ser que passem sobre os nossos cadáveres, venha aqui instalar-se a negra Inquisição a perseguir a palavra escrita. Ergueremos barricadas nas ruas, tribunas nas esquinas…

Do Pinga de Ouro, nas imediações, em mesa junta a uma das portas, o coronel Amâncio Leal ouvia o discurso inflamado do doutor, brilhava-lhe o olho são, comentou sorrindo para o coronel Jesuíno Mendonça:

 - O Doutor está inspirado hoje…

Jesuíno estranhou:

 - Ainda não falou dos Ávilas. Discurso dele sem Ávilas não presta…

Dali, daquela mesa, haviam assistido a todo o desenrolar dos acontecimentos. A chegada dos homens armados, jagunços trazidos das fazendas, postando-se nas imediações do jornal, esperando a hora. O cerco perfeito aos moleques saindo das oficinas com os exemplares. Alguns ainda tinham chegado a vozear:

 - Diário de Ihéus! Olha o Diário… A chegada do engenheiro, o Governo de cara no chão…

Os jornais sendo sequestrados dos moleques em pânico. Alguns jagunços entraram na redacção e nas oficinas, saíram com o resto da edição. Contava-se depois que o velho Ascendino, pobre professor de Português a ganhar uns cobres extras na revisão dos artigos de Clóvis Costa, dos tópicos e notícias, borrara-se todo de medo, as juntas numa súplica:

 - Não me matem, tenho família…

As latas de querosene estavam num caminhão parado junto ao passeio, tudo tinha sido previsto. O fogo crepitou, cresceu em labaredas altas, lambendo, ameaçador, as fachadas das casas; parava gente a olhar a cena sem compreender.

Os jagunços, para não perder o costume e garantir a retirada, deram umas descargas para o ar, dissolvendo o ajuntamento. Embarcaram no caminhão, o chauffer atravessou as ruas centrais a buzinar, quase atropelando o exportador Steveson. Ia numa disparada de louco, sumiu em direcção à estrada de rodagem.
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