GABRIELA
CRAVO
E
CANELA
Episódio Nº 131
Do fogo e da água com jornais e corações.
Alguns felizardos conseguiram retirar
das cinzas molhadas exemplares quase perfeitos do jornal. O que o fogo não
consumira empapara-se de água, trazida em latas e baldes por operários,
empregados e voluntários de boa vontade, para apagar a fogueira. As cinzas
espalhavam-se pela rua, voavam à brisa da tarde, um cheiro de papel queimado.
Trepado numa mesa transportada da
redacção, o Doutor, pálido de revolta, a voz embargada, discursava para os
curiosos amontoados ante o Diário de Ilhéus:
-
Almas de Torquemada, Neros de fancaria, cavalos de Calígula, apetece-lhes
combater e vencer ideias, derrotar a luz do pensamento escrito com o fogo
criminoso de incendiários, obscuros obscurantistas!
Algumas pessoas aplaudiam, a multidão de
moleques em festa clamava, batia palmas, assobiava. O Doutor, ante tanto
entusiasmo, o “pince-nez” perdido no paletó, estendia os braços para os
aplausos, vibrante e comovido:
-
Povo, ó meu povo de Ilhéus, terra de civilização e de liberdade! Jamais
permitiremos, a não ser que passem sobre os nossos cadáveres, venha aqui instalar-se a negra Inqui sição
a perseguir a palavra escrita. Ergueremos barricadas nas ruas, tribunas nas esqui nas…
Do Pinga de Ouro, nas imediações, em
mesa junta a uma das portas, o coronel Amâncio Leal ouvia o discurso inflamado
do doutor, brilhava-lhe o olho são, comentou sorrindo para o coronel Jesuíno
Mendonça:
-
O Doutor está inspirado hoje…
Jesuíno estranhou:
-
Ainda não falou dos Ávilas. Discurso dele sem Ávilas não presta…
Dali, daquela mesa, haviam assistido a
todo o desenrolar dos acontecimentos. A chegada dos homens armados, jagunços
trazidos das fazendas, postando-se nas imediações do jornal, esperando a hora.
O cerco perfeito aos moleques saindo das oficinas com os exemplares. Alguns
ainda tinham chegado a vozear:
-
Diário de Ihéus! Olha o Diário… A chegada do engenheiro, o Governo de cara no
chão…
Os jornais sendo sequestrados dos
moleques em pânico.
Alguns jagunços entraram na redacção e nas oficinas, saíram
com o resto da edição. Contava-se depois que o velho Ascendino, pobre professor
de Português a ganhar uns cobres extras na revisão dos artigos de Clóvis Costa,
dos tópicos e notícias, borrara-se todo de medo, as juntas numa súplica:
-
Não me matem, tenho família…
As latas de querosene estavam num
caminhão parado junto ao passeio, tudo tinha sido previsto. O fogo crepitou,
cresceu em labaredas altas, lambendo, ameaçador, as fachadas das casas; parava
gente a olhar a cena sem compreender.
Os jagunços, para não perder o costume e
garantir a retirada, deram umas descargas para o ar, dissolvendo o ajuntamento.
Embarcaram no caminhão, o chauffer atravessou as ruas centrais a buzinar, quase
atropelando o exportador Steveson. Ia numa disparada de louco, sumiu em
direcção à estrada de rodagem.
(Click na imagem e segure-a enquanto as ondas não a levam)
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