sábado, agosto 18, 2012


GABRIELA
CRAVO
E
CANELA

Episódio Nº 170


Foi a temporada dos poemas longos, de exaltação daquele amor que nem a morte e nem mesmo o passar dos séculos destruiriam jamais. “Eterno como a própria eternidade”, “maior que os espaços conhecidos e desconhecidos, mais imortal do que os deuses imortais”, escrevia o professor e poeta.
 Por convicção, e também por conveniência – poemas longos, se fosse a rimá-los e metrificá-los, não havia tempo que chegasse – aderira Josué à famosa “Semana da Arte Moderna” de São Paulo, cujos ecos revolucionários chegavam a Ihéus com três anos de atraso.
 Agora jurava por Malvina e pela poesia moderna, liberta da cadeia da rima e da métrica, como dizia ele nas discussões literárias na Papelaria Modelo, com o Doutor, João Fulgêncio e Nhô-Galo, ou no Grémio Rui Barbosa, com Ari Santos. E também menos custosa, sem ter de contar sílabas, procurar rimas. E, além de tudo, não era um “estilo moderno” a casa de Malvina? Almas gémeas até no gosto, pensava ele.
 O extraordinário é que essa eternidade do tamanho da própria eternidade, essa imortalidade maior que a imortalidade de todos os deuses reunidos, conseguiu ainda crescer, agora numa prosa panfletária, quando a moça rompeu o namoro e começou o escândalo com Rómulo.
 Largo era o peito compreensivo de Nacib, a acompanhar no bar as melancolias do professor. Solidários, os amigos da Papelaria e do Grémio, um tanto curiosos também. Mas foi a dor de Josué debruçar-se, inexplicavelmente, sobre o ombro castelhano e anarquista do sapateiro Filipe.
O remendão espanhol era o único filósofo da cidade, de conceito formados sobre a sociedade e a vida, as mulheres e os padres. Péssimo conceito, aliás, Josué devorou-lhe os folhetos de capa encarnada, abandonou a poesia, iniciou fecunda carreira de prosador.
 Era uma prosa melosa e reivindicativa: Josué aderira ao anarquismo de corpo e alma, passara a odiar a sociedade constituída, a fazer o elogio das bombas e da dinamite regeneradoras, a clamar vingança contra tudo e contra todos.
 O Doutor elogiava-lhe o estilo condoreiro. No fundo, toda essa exaltação tenebrosa dirigia-se contra Malvina. Dizia-se para sempre desiludido das mulheres, sobretudo das belas filhas dos fazendeiros, cobiçados partidos matrimoniais. “Não passam de umas levianasitas…”, cuspia ao vê-las passar, juvenis nos uniformes do Colégio das Freiras ou tentadoras nos vestidos elegantes.
 Mas o amor que dedicara a Malvina, ah!, esse continuava eterno, na prosa exaltada, jamais morreria em seu peito, e só não o matava de desespero porque ele se propunha, com sua pena, a modificar a sociedade e o coração das mulheres.
 Logicamente, o ódio concebido contra as moças de sociedade, alicerçado na ideologia confusa dos folhetos, aproximou-o das mulheres do povo. Quando se dirigiu a primeira vez para a solitária janela de Glória – num esplêndido gesto revolucionário, único acto militante de sua fulminante carreira política, concebido e executado, aliás, antes de haver aderido ao anarquismo – fizera-o com o intuito de marcar para Malvina o grau de loucura em que o afundava aquela desavergonhada conversa da moça com o engenheiro.
(A nudez como sinal de pureza)

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