Portugal, Nação Valente e
Imortal (II Parte)
As empresas fecham, os
desempregados aumentam, os impostos crescem, penhoram casas, automóveis, o ar
que respiramos e a maltosa incapaz de enxergar a capacidade purificadora destas
medidas. Reformas ridículas, ordenados mínimos irrisórios, subsídios de
cacaracá?
Talvez. Mas passaremos sem
dificuldade o buraco da agulha enquanto os Loureiros todos abdicam, por amor ao
próximo, de uma Eternidade feliz. A transcendência deste acto dá-me vontade de
ajoelhar à sua frente. Dá-me vontade? Ajoelho à sua frente indigno de lhes desapertar
as correias dos sapatos.
Vale e Azevedo para os
Jerónimos, já!
Loureiro para o Panteão já!
Jorge Coelho para o Mosteiro
de Alcobaça, já!
Sócrates para a Torre de
Belém, já! A Torre de Belém não, que é tão feia. Para a Batalha.
Fora com o Soldado Desconhecido, o Gama, o
Herculano, as criaturas de pacotilha com que os livros de História nos enganaram.
Que o Dia de Camões passe a
chamar-se Dia de Armando
Vara.
Haja sentido das proporções,
haja espírito de medida, haja respeito.
Estátuas equestres para
todos, veneração nacional. Esta mania tacanha de perseguir o senhor Oliveira e
Costa: libertem-no. Esta pouca vergonha contra os poucos que estão presos, os
quase nenhuns que estão presos como provou o senhor Vale e Azevedo, como provou
o senhor Carlos Cruz, hedionda perseguição pessoal com fins inconfessáveis.
Admitam-no. E voltem a pôr o
senhor Dias Loureiro no Conselho de Estado, de onde o obrigaram, por maldade e
inveja, a sair.
Quero o senhor Mexia no
Terreiro do Paço, no lugar de D. José que, aliás, era um pateta.
Quero outro mártir qualquer, tanto faz, no
lugar do Marquês de Pombal, esse tirano. Acabem com a pouca vergonha dos
Sindicatos.
Acabem com as manifestações,
as greves, os protestos, por favor, deixem de pecar. Como pedia o doutor João
das Regras, olhai, olhai bem, mas vêde. E tereis mais fominha e, em
consequência, mais Paraíso. Agradeçam este solzinho. Agradeçam a Linha Branca.
Agradeçam a sopa e a
peçazita de fruta do jantar. Abaixo o
Bem-Estar.
Vocês falam em crise mas as
actrizes das telenovelas continuam a aumentar o peito: onde é que está a crise,
então?
Não gostam de olhar aquelas
generosas abundâncias que uns
Violadores de sepulturas,
com a alcunha de cirurgiões plásticos, vos oferecem ao olhinho guloso? Não
comem carne mas podem comer lábios da grossura de bifes do lombo e transformar
as caras das mulheres em tenebrosas máscaras de Carnaval.
Para isso já há dinheiro,
não é? E vocês a queixarem-se sem vergonha, e vocês cartazes, cortejos, berros.
Proíbam-se os lamentos injustos.
Não se vendem livros?
Mentira. O senhor Rodrigo dos Santos vende e, enquanto
vender, o nível da nossa cultura ultrapassa, sem dificuldade, a
Academia Francesa. Que queremos? Temos peitos, lábios, literatura e os
ministros e os ex-ministros a tomarem conta disto.
Sinceramente, sejamos justos,
a que mais se pode aspirar? O resto são coisas insignificantes: desemprego,
preços a dispararem, não haver com que pagar ao médico e à farmácia, ninharias.
Como é que ainda sobram criaturas com a desfaçatez de protestarem? Da mesma
forma que os processos importantes em tribunal a indignação há-de, fatalmente,
de prescrever.
E, magrinhos, magrinhos mas
com peitos de litro e beijando-nos uns aos outros com os bifes das bocas
seremos, como é nossa obrigação, felizes…
(Crónica satírica de António
Lobo Antunes, Abril de 2012)
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