CRAVO
E
CANELA
Episódio Nº 189
Dos equívocos da Sr.ª Saad
Era o último dos circos. O negrinho
Tuísca abanava a cabeça, parado ante o vacilante mastro, quase tão pequeno como
um mastro de saveiro. Menor e mais vagabundo era impossível. O pano de lona do
toldo esburacado como céu em noite de estrelas ou o vestido da maluca Maria Me
Dá.
Não era muito maior do que a banca de
peixe, mal a escondia no descampado do porto. Não fora a provada lealdade a
caracterizá-lo e o negrinho Tuísca ter-se-ia completamente desinteressado do
Circo Três Américas.
Que diferença para o Grande Circo
Balcânico, com seu pavilhão monumental, as jaulas das feras, os quatro
palhaços, o anão e o gigante, os cavalos amestrados, os trapezistas de toda a
intrepidez. Fora uma festa na cidade. Tuísca não perdera espectáculo. Abanava a
cabeça.
Amores e devoções obrigavam-se em seu
pequeno e cálido coração. A negra Raimunda, sua mãe, agora felizmente melhorada
do reumatismo, a lavar e a engomar roupa; a pequena Rosinha, de cabelos de
oiro, filha de Tonico Bastos, sua secreta paixão; dona Gabriela e seu Nacib; as
boas irmãs Dos Reis; seu mano Filó, herói das estradas, rei do volante,
majestoso na direcção de caminhões e marinetes. E os circos.
Desde que se entendia, não se levantara
em Ilhéus pavilhão de circo sem seu
decidido apoio, sua prestimosa colaboração: acompanhando o palhaço nas ruas,
ajudando os mata-cachorros, comandando entusiasta claque de moleques, fazendo
recados, infatigável e indispensável.
Não amava os circos apenas como a
diversão suprema, o mágico espectáculo, a tentadora aventura. Vinha a eles como
alguém que cumpre o seu destino. E, se com um deles, ainda não partira,
devia-se ao reumatismo de Raimunda. Sua ajuda era necessária em casa. Os níqueis que
apurava em variados misteres: de consciencioso engraxate a esporádico garçon,
de vendedor de apreciados doces das irmãs Dos Reis a discreto portador de
bilhetes amorosos, a exímio ajudante do árabe Nacib na manipulação das bebidas.
Suspirou ante tanta pobreza do circo recém-chegado.
Vinha o circo Três Américas agonizando
pelos caminhos. O único animal, um velho leão desdentado, doaram-no à
Intendência de Conqui sta,
agradecendo passagens fornecidas e por não poderem sustentá-lo. “Presente de
grego”, dissera o Intendente. Em cada praça desertavam artistas, sem sequer
reclamarem os atrasados salários.
Converteram em comida tudo o que
puderam, até os tapetes do picadeiro. O elenco reduzira-se à família do
director: a mulher, as duas filhas casadas, a solteirona, os dois genros, e um
vago parente que era bilheteiro e comandava depois os mata-cachorros.
Entre os sete, revezavam-se no picadeiro
em números de equi librismo, em
saltos mortais, comendo espadas e fogo, andando no arame, fazendo truques com
cartas, levantando marombas pintadas de negro, reunindo-se para as «pirâmides
humanas». O velho director era palhaço, ilusionista e tocava música num
serrote, a cujo som dançavam as três filhas.
Juntavam-se na segunda parte do
espectáculo para representar A Filha do Palhaço, mistura de chanchada e
dramalhão, «hilariante e comovente tragicomédia, que faz o distinto público rir
às gargalhadas e chorar aos soluços».
(Click na imagem. A senhora pede desculpa por estar de costas mas não é que esteja zangada, apenas lhe dá mais jeito...)
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