segunda-feira, janeiro 28, 2013

Tempos terríveis, aqueles.. (Cick na imagem.)

Romance de Pedro e Inês
(Última Parte)


Esta tragédia de sangue foi uma mina de ouro para a literatura mundial. Na Idade-Média abundam os dramas de paixão e ferocidade mas é preciso remontar ao começo das sociedades europeias, com Tristão e Isolda, para encontrar uma intriga assim tão poética, cruel e emocional.

A morte desta desventurosa mulher, mesmo que não lhe bolisse com as forças profundas da paixão, representava uma afronta ao homem dominador e déspota que era D. Pedro.

Não podendo vingar-se no pai e nos fidalgos vingou-se nas populações que caíram, vítimas da sua onda raivosa.

 - “Juntou muita gente sua com todos os malfeitores, fugidos à justiça do Reino por seus crimes – escreve o insuspeito padre Baião – como já tinha feito o seu pai com menos causa, contra seu avô e convocou os dois irmãos de Dona Inês, Fernando e Álvaro Pires de Castela, eles com suas gentes, parentes e amigos e marcharam contra as províncias de Entre-Douro-e-Minho, Trás-os-Montes e Beira, onde fizeram grandes estragos, executando nas populações a paixão da culpa que não tinham, verificando-se aqui o provérbio de pagar o justo pelo pecador, que, neste caso, melhor se diria: “os inocentes pelos culpados.”

Se fosse preciso trazer à barra um documento concludente da insanidade mental deste príncipe, bastava enunciar a sua conduta com povoações totalmente alheias aos dramas que aconteciam nos Paços Reais.

Foi a mãe, a rainha Dª Brites, que veio com as suas lágrimas e rogos suster a obra de carnificina e devastação do energúmeno do seu filho.

Mal o pai faleceu e tomou posse absoluta do reino o seu primeiro acto foi dar curso à vingança pessoal e aos desagravos da afronta que lhe haviam infligido os fidalgos privando-o do corpo voluptuoso da amante.

Os assassinos foram tão barbaramente executados que de igual crueldade e sadismo é raro que se encontre exemplo nos crimes que os facínoras natos vão purgar nas galés e, como reparação nacional, não viu melhor que obrigar os homens da corte, clero, magistrados e o povo a prestarem honras à rainha, aquela de quem desdenharam em vida.

Com eclesiásticos servis, temerosos do chicote de cordas que trazia à cinta, ufanamente, como um fidalgo da Renascença com a sua espada, representou um fantástico matrimónio e, para complemento, mandou exumar o corpo - que enterrado há dois anos não passava de uma carcassa fétida e macabra -  para, depois de vestido com púrpura e ajoujado do diadema, sentar no trono aquela que fora a sua bela concubina.

Teria esta cerimónia sido possível de executar com os restos de um cadáver apodrecido?... Mas que ele era capaz de capaz de conceber homenagem tão inverosímil, quem o nega?

Verdade indiscutível foi a trasladação do corpo com grande pompa de Coimbra para Alcobaça. Quem o diz é Fernão Lopes. Não era empresa impossível conduzir o ataúde real a ombro através de dezassete léguas, das velhas, que havia a fazer de percurso. Os portadores revezavam-se. Se não fora as madeiras preciosas da urna, aquilo pouco mais pesava que uma caixa de palitos. Era como se levassem um passarinho. De mais, dispunham de varas da altura de um homem, terminadas por forquilhas de ferro, em que de tempos a tempos repousavam o esquife para tomar fôlego.

Disseram os cronistas da época que o féretro passou entre duas filas ininterruptas de gente postada ao longo dos caminhos com tochas acesas em punho o que é um relato completamente exagerado. Para formar esses cordões de povo seriam precisas umas duzentas mil pessoas, gente que nem sequer havia em toda aquela região, ceifada pouco antes pela peste, daquelas tão grandes, que produziam tal mortandade, que era capaz de extinguir vilas e aldeias a ponto de não se encontrar uma alma para contar do flagelo.

Inês de Castro transitou para Alcobaça na cernelha de um macho, ou aos ombros de servos entre luzidas escoltas de gente de armas, de frades, de palacianos, à cauda do rei que devia uivar, grunhir o rosário, empinar a borracha de vez em quando, sem excluir as suas ameaças e graçolas aos camponeses siderados a ver passar o cortejo.

E foi assim, no meio desta gente esbaforida da marcha, estropeada, rouca de cantar o “miserere”, que o cadáver de Inês – que fora um lindo e precioso instrumento de gozo e de delícias – deu entrada na cripta de Alcobaça.

Esperava-a um mausoléu admirável que os melhores artífices estrangeiros, assoldadados a todo o preço, tinham vindo lavrar de harmonia com o pensamento ambicioso de ali quedarem, imperialmente amantes, “até ao fim do mundo”.

Aquilino Ribeiro – Príncipes de Portugal

Nota
Visite o Mosteiro de Alcobaça, deixe-se ficar em frente do túmulo de Inês admirando-o. Através de um exercício mental e à luz deste pequeno texto, recrie o contexto social em que aconteceu a vida e o fim daquela mulher e perceba como aqueles tempos eram, eles mesmos, um factor de risco permanente que hoje nos horroriza…
Como progredimos de então para cá!...                                                                                              

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