Colonial de Angola
Ao fim de meio
século, as lembranças da guerra deixam de ser recordações para serem histórias,
histórias de uma história.
As cores dos
cenários guardados na memória começam a esbater-se como nas fotografias antigas
guardadas nos álbuns e os meus camaradas, alguns dos quais ainda encontro
anualmente no nosso almoço, estão velhos, carecas e barrigudos, não são mais os
meus jovens soldados e eu não serei mais o seu jovem alferes.
A esta distância, chego mesmo a perguntar a
mim próprio se realmente estive lá, se vivi na realidade aquelas cenas… podia-as
ter lido num livro de aventuras como fazia quando era jovem… podiam-me tê-las
contado…
Angola é um país
rico de petróleo e de outras matérias-primas mas com um povo pobre, acantonado
aos montes no imenso subúrbio da cidade de Luanda, perdida, para maior parte
deles, os mais jovens, as ligações às suas aldeias distantes e a um viver
tradicional.
Há muito que os
senhores da guerra se transferiram para o poder, esquecida a luta contra os
brancos colonialistas e ultrapassada a outra, aquela em que, de 1975 a 2002, se mataram uns
aos outros como acontece em todas as guerras civis, esta com acicate das
rivalidades tribais. No fim, morto o Savimbi, conformaram-se com a situação,
distribuíram o poder e foram às vidas.
Hoje, muitos deles,
são empresários ricos, muito ricos com vidas sumptuosas. Para esses, valeram as
guerras. A riqueza do petróleo esperava-os.
E nós, que andámos
nós lá a fazer?
A verdadeira guerra travaram-na eles, mais
tarde, uns com os outros. Connosco treinaram-se... muitos deles fizeram-se
óptimos soldados e ganharam direito aos despojos das duas guerras que venceram…
mas nós, que andámos lá a fazer?
- A cumprir comissões de guerra de dois anos
cada, a riscar dias nos calendários à espera da data do reembarque, uns a saírem e outros a entrarem até
virmos todos de enxurrada, numa debandada vergonhosa, à pressa, dentro de
barcos, sem feridos nas macas mas com as feridas da vergonha que marcam como as
outras, às vezes ainda mais.
Se eu nunca vi os soldados inimigos como posso
falar em guerra?
- Se nunca dei um tiro para além de meia dúzia para o ar seguido de gritos de “… aí vai tropa… aí vai tropa…” para afugentar meia dúzia deles. Seriam meia-dúzia?... nunca o saberei.
- Se nunca dei um tiro para além de meia dúzia para o ar seguido de gritos de “… aí vai tropa… aí vai tropa…” para afugentar meia dúzia deles. Seriam meia-dúzia?... nunca o saberei.
Esperavam-nos junto
ao riacho, logo de manhã, onde fomos buscar esse líqui do
precioso que se chama água. No dia anterior tínhamos chegado àquela fazenda de
café desocupada desde o início da “maca” pela fuga dos donos e dos trabalhadores, há cerca de dois
anos.
Então, o Capitão
dissera-nos que íamos reconqui star
território ao inimigo… mas nós não acreditávamos, nem na reconqui sta, nem no inimigo. O objectivo das Chefias Militares
em Luanda era ambicioso, relançar a economia do café que era a riqueza daquela
zona.
Tiros! “…baixa a cabeça “Alferes”! gritava o
“Maia”… não me chames de “Alferes” pá, que eles matam-me… gritava o “Alferes” …”
aí vai tropa… aí vai tropa…” gritava eu a correr encosta abaixo aos tiros para
o ar…
Depois, silêncio total. Passados minutos que
pareceram uma eternidade, o matraquear do motor a gasóleo do pequeno Unimog que
regressava, mais abaixo, a descrever a curva do caminho.
Ninguém matou
ninguém, houve apenas um ferido da parte deles, não sabemos se grave, porque a água do riacho
manchou-se de sangue…
O “Maia” apanhou um louvor, o “Alferes” sobreviveu e a partir desse dia, não mais nos incomodaram… nem nós a eles…
O “Maia” apanhou um louvor, o “Alferes” sobreviveu e a partir desse dia, não mais nos incomodaram… nem nós a eles…
Terá sido mesmo isto
que se passou?... ou foi apenas mais uma história a fazer parte da outra
história?
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