terça-feira, março 19, 2013


Lembranças da Guerra
Colonial de Angola


Ao fim de meio século, as lembranças da guerra deixam de ser recordações para serem histórias, histórias de uma história.

As cores dos cenários guardados na memória começam a esbater-se como nas fotografias antigas guardadas nos álbuns e os meus camaradas, alguns dos quais ainda encontro anualmente no nosso almoço, estão velhos, carecas e barrigudos, não são mais os meus jovens soldados e eu não serei mais o seu jovem alferes.

 A esta distância, chego mesmo a perguntar a mim próprio se realmente estive lá, se vivi na realidade aquelas cenas… podia-as ter lido num livro de aventuras como fazia quando era jovem… podiam-me tê-las contado…

Angola é um país rico de petróleo e de outras matérias-primas mas com um povo pobre, acantonado aos montes no imenso subúrbio da cidade de Luanda, perdida, para maior parte deles, os mais jovens, as ligações às suas aldeias distantes e a um viver tradicional.

Há muito que os senhores da guerra se transferiram para o poder, esquecida a luta contra os brancos colonialistas e ultrapassada a outra, aquela em que, de 1975 a 2002, se mataram uns aos outros como acontece em todas as guerras civis, esta com acicate das rivalidades tribais. No fim, morto o Savimbi, conformaram-se com a situação, distribuíram o poder e foram às vidas.

Hoje, muitos deles, são empresários ricos, muito ricos com vidas sumptuosas. Para esses, valeram as guerras. A riqueza do petróleo esperava-os.

E nós, que andámos nós lá a fazer?

 A verdadeira guerra travaram-na eles, mais tarde, uns com os outros. Connosco treinaram-se... muitos deles fizeram-se óptimos soldados e ganharam direito aos despojos das duas guerras que venceram… mas nós, que andámos lá a fazer?

 - A cumprir comissões de guerra de dois anos cada, a riscar dias nos calendários à espera da data do reembarque, uns a saírem e outros a entrarem até virmos todos de enxurrada, numa debandada vergonhosa, à pressa, dentro de barcos, sem feridos nas macas mas com as feridas da vergonha que marcam como as outras, às vezes ainda mais.

 Se eu nunca vi os soldados inimigos como posso falar em guerra?

 - Se nunca dei um tiro para além de meia dúzia para o ar seguido de gritos de “… aí vai tropa… aí vai tropa…” para afugentar meia dúzia deles. Seriam meia-dúzia?... nunca o saberei.

Esperavam-nos junto ao riacho, logo de manhã, onde fomos buscar esse líquido precioso que se chama água. No dia anterior tínhamos chegado àquela fazenda de café desocupada desde o início da “maca” pela fuga dos donos e dos trabalhadores, há cerca de dois anos.

Então, o Capitão dissera-nos que íamos reconquistar território ao inimigo… mas nós não acreditávamos, nem na reconquista, nem no inimigo. O objectivo das Chefias Militares em Luanda era ambicioso, relançar a economia do café que era a riqueza daquela zona.

 Tiros! “…baixa a cabeça “Alferes”! gritava o “Maia”… não me chames de “Alferes” pá, que eles matam-me… gritava o “Alferes” …” aí vai tropa… aí vai tropa…” gritava eu a correr encosta abaixo aos tiros para o ar…

 Depois, silêncio total. Passados minutos que pareceram uma eternidade, o matraquear do motor a gasóleo do pequeno Unimog que regressava, mais abaixo, a descrever a curva do caminho.

Ninguém matou ninguém, houve apenas um ferido da parte deles, não sabemos se grave, porque a água do riacho manchou-se de sangue…

O “Maia” apanhou um louvor, o “Alferes” sobreviveu e a partir desse dia, não mais nos incomodaram… nem nós a eles…

Terá sido mesmo isto que se passou?... ou foi apenas mais uma história a fazer parte da outra história?


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