DO
CARNAVAL
Episódio Nº 68
Pedro Ticiano agonizava em
plena posse das suas faculdades, apesar de bem perto dos setenta anos. Belo,
nas últimas horas da vida. Pele e uns tantos ossos, queimados pela febre, seu
rosto no entanto, tinha uma beleza estranha a rodeá-lo.
Paulo Rigger entrou com a
cabeça baixa e apertando os lábios para não chorar. Amava aquele destruidor
admirável que conseguira viver uma vida de oposição.
Jerónimo Soares abraçou
Pedro…
- Então, como vai isso?
- O moribundo respondeu, num fio de voz.
- Vai indo como você vê.
No quarto, uma pequena luz
eléctrica chorava atrás do abajur uma luz esbranqui çada.
Ticiano olhou em volta:
- E José?
- Não o conseguimos encontrar. Mas talvez não
demore. E, demais, temos tanto tempo ainda para conversar… Anos…
- Deixe disso, Jerónimo. Você quer me
consolar? Eu sei que vou morrer. Mas não tenho medo da morte. Já vivi muito.
Conheço a vida e os homens.
E, querendo rir.
- E as mulheres também.
O filho e a neta choravam.
Paulo Rigger, calado, soluços presos na garganta, tinha um grande ar de idiota.
Pedro Ticiano sorria da
morte. Formidável até ao último momento. Morrendo tão admiravelmente como havia
vivido.
Na cabeceira da cama,
Paulo Rigger cismava, amedrontado, como se fosse ele o agonizante. E se
houvesse céu e inferno, Pedro Ticiano estaria condenado. Talvez sofresse.
Revoltava-o aquela ideia. E se chamasse um padre?
Passava as mãos pelos
cabelos, a testa a arder. Chegou-se mais perto de Ticiano. Segredou-lhe ao
ouvido.
- E se houver uma vida depois desta, Pedro?
- Você quer chamar um padre, Rigger? Não faça
isso. Eu não acredito. Faço questão que se saiba que morro descrente.
Esforçava-se por sorrir. E
continuou, a voz mais baixa:
- E se houvesse eu preferia o inferno.
E os últimos momentos
foram chegando. A face de Pedro Ticiano contraía-se num rito de dor:
- Eu morro! Eu morro!
- Ticiano! Ticiano!
Paulo precipitou-se.
- Responda-me, Ticiano. Qual é a solução do
problema? Para que fim a gente vive?
- Vive-se por viver. A Felicidade é tudo que
não se consegue, o que se deseja…
- E o segredo para ser sereno?
- Não desejar. Chegar à suprema renúncia de
não querer. Viver para morrer…
Caiu desfalecido. Jerónimo
chorava como uma criança. O filho, num canto, espiava a cena dolorosa. O
moribundo levantou a cabeça num esforço desesperado. Relanceou os olhos em
torno de si, num adeus. Murmurou, numa voz longínqua, voz de túmulo.
- Que triste fim para a minha grande tragédia!
Tentou mais uma vez
sorrir. Mas a boca resistiu dolorosamente. Os olhos fecharam-se. E Pedro
Ticiano morreu.
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