sexta-feira, abril 12, 2013

Relacionou-se com os vizinhos....

O PAÍS
DO
CARNAVAL

Episódio Nº 71


Recordava-o como um mito, um ser excepcional que tortura e se impõe. Ticiano, que o torturara, que lançara a dúvida no seu espírito, dominara-o com a força da sua bizarria, de seu todo esquisito de céptico e demolidor.

Jerónimo Soares voltou a sentir entusiasmo quando passavam pelas ruas, garbosos, soldados a cantar um chamado hino nacional.

Começou novamente a achar graça nas coisas comuns da vida. Relacionou-se com os vizinhos. Discutia política com o Sr, Brederodes Antunes da Encarnação, que opinava pelo regresso do país ao regime constitucional.

Cumprimentava sorridente a velhota da esquina que fazia doces para vender na cidade. Tornou-se o modelar funcionário público do antigamente, de antes de conhecer Pedro Ticiano.

Era a escalada da Felicidade.

E, além do mais, tinha Conceição. A antiga prostituta, muito carinhosa, enchia-lhe a vida. Amava-o como sabem amar as mulheres que venderam o seu corpo a multidões de homens.

Essas mulheres são as requintadas no amor. As mestras do carinho. Conceição adivinhava-lhe os desejos. Dava-lhe essas felicidades quotidianas que os homens equilibrados conseguem e outros tantos procuram.

À noite deitava a cabeça de Jerónimo nos seus joelhos e ficava horas perdidas a alisar-lhe o cabelo mestiço. Ficavam silenciosos, voluptuosos da felicidade.

Ele já não tinha dias de mau humor. O mesmo, sempre. A mesma bondade grande. O mesmo sorriso confiante de quem se livrou da insatisfação.

Ruth, a mulher de Ricardo, é que falava certo. Tudo aquilo, todo aquele negócio de insatisfação, era literatura…

Hoje, como ele dava razão a Ruth! Literatura, tudo…

Entretanto, ele sentia ainda que lhe faltava alguma coisa. A sua felicidade, apesar de grande, não podia ser chamada de absoluta. Ressentia-se de algo. Jerónimo não sabia o que fosse.

E por vezes, raras vezes é verdade, passava-lhe pela cabeça aquilo, perturbando-o. Faltava-lhe alguma coisa…

Na repartição, onde agora assinava o ponto todo o dia, largava a pena e matutava. Amor, tinha. Ganhava bem. Boa comida, boa cama. Que precisava?

Seria o diabo da insatisfação que o perseguia? Então seriam verdades as blagues e os paradoxos de Pedro Ticiano?

- Não. Esse negócio de insatisfação e de dúvidas é para Paulo e José Lopes. Comigo, não. Eu sou um burguês feliz. Nada de intelectualismos… Mas que diabo me faz falta?

O companheiro de banca despertava-o:

 - Eh, mano! Está no mundo da lua?

 - Não. Estou pensando cá umas coisas…

 - Pensando? Você é poeta, rapaz?

 - Qual! Deus me livre…

À noite também cismava. Enquanto não chegasse a completa felicidade não descansaria. E quase que se infelicita criando um problema.

Nessa época Jerónimo Soares não desejava, não carregava aspirações. O querer ser o chefe da sua secção não chegava a ser uma ambição…

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