De Clara Ferreira Alves
"O homem não bebia, não fumava e era bem apessoado.
Penteado de risco ao lado, gravata, um perfil adunco disfarçado pelas sombras
do olhar, entre o manhoso e o matreiro, o sagaz e o perspicaz. Manhoso é matreiro
e sagaz é perspicaz. Apliquem-se adjectivos de significado único e finjam-se
distintos e múltiplos, foi esse o truque de Salazar. Havia um Parlamento, era
dele, era um Parlamento. Havia eleições, eram dele, eram eleições.
No tempo
dele não havia escândalo nem corrupção porque não havia quem os denunciasse nem
imprensa que os publicasse, a PIDE e a Censura vigiavam, e o salazarismo passou
como um período ideal, autoritariamente ideal, em que os homens políticos eram
limpos e defendiam o império, governavam e não se governavam. E aqui lo dos Ballets Rose murmurou-se nos corredores e
salões como uma anedota distante, tão distante como África e as histórias das
mulheres dos sobas ou as lendas das cabeças empaladas dos pretos. Os canibais
andavam por aí, nas casas grandes e sanzalas do Restelo, do Estoril, de Sintra,
dos lugares chiques onde moravam os ricos e poderosos.
E Portugal era grande, assente sobre um povo escravo e
analfabeto, trémulo e rapado. Sem ofensa. Um Portugal construído sobre pilares
de medo em que se temia tudo, o padre que arrecadava confissões e adultérios, o
marido que batia na mulher, o vizinho do lado que era pide, o colega de escola
que batia nos outros e carteava um trunfo de pai-ministro, o polícia que usava
a farda para comprar fiado. E como todos eram muito pobres, comprava-se açúcar
amarelo a prestações, e Omo, e marmelada, e iogurte, e bolachas torradas,
luxos.
A taberna não fiava. No país das meias-tintas
calçávamos meias-solas fiadas no sapateiro, e a vida era vivida a prestações e
cobrada aos fins de mês, a data histórica do ano. Ao-fim-do-mês-pago, e as
criadas contavam das patroas que dormiam com os credores para adoçar a dívida,
uma prostituição muito consentida visto que as mulheres, naquele tempo, ou eram
mães ou eram putas.
As que não casavam era freiras ou madrinhas-de-guerra. As
do regime eram do Movimento Nacional Feminino, instituição de caridade montada
com laca de cabelo. As mães mandavam os meninos para a guerra nas colónias em
barcos imensos e recebiam cabogramas anunciando a morte. Mais as lágrimas do
Natal do Soldado que eram espectáculo de televisão. Para as minhas mulheres,
mães, madrinhas, noivas e demais família um Natal muito feliz e com muitas
propriedades. Os mais letrados riam-se muito dos soldadinhos de chumbo, broncos
que nem sabiam soletrar prosperidades.
O povinho era assim e não se lhe podia
dar o voto, acabaria por estragá-lo, Deus e o Cardeal Cerejeira nos livrem. Os
valentes soldados Silvas nunca mandavam propriedades para as filhas porque não
tinham chegado a tê-las, rapazes de mama atirados para o mato com uma
espingarda nas mãos por amor à pátria. A pátria devolvia o cadáver. Os que
morreram nem chegaram a saber por que tinham morrido. E os que não morreram e
ficaram sem olhos, sem mãos, sem pernas, sem juízo, nunca chegaram a ser
lembrados pela pátria madrasta. As mães e viúvas de negro choravam nas campas
dos cemitérios de aldeia, os homens tiravam respeitosamente o chapéu, e depois
tudo se sepultava no esquecimento.
Os filhos dos ricos e dos poderosos eram
"dispensados" da tropa, e os filhos da burguesia fugiam para os cafés
de Paris e o "estrangeiro". O fascismo nunca existiu. Alguns deles,
alguns, foram dar com o rabo sentado na selva e começaram a perguntar: que faço
eu aqui ? Alguns deles tiveram a
coragem de fazer uma revolução. Salazar morreu no conforto da cama e da manta e
da governanta antes de constatar a heresia do 25 de Abril e o cheiro dos
cravos. Os herdeiros foram para o Brasil dar aulas na universidade e os pides
foram recuperados para a sociedade porque somos assim, um país de brandos
costumes onde nunca há mortos e feridos e ninguém há-de escapar. A guerra de
África? Aqui lo era lá longe, e não
havia televisão, nem fotografias, nem relatos dos massacres.
Nem liberdade. E
Salazar é que sabia, Salazar é que mandava. Nas escolas, nós, servos
descendentes de reis e heróis do mar, de padeiras e assassinos, de sonhadores e
magos, nós Pessoas geniais iguais umas às outras, gritávamos obedientes,
Salazar, Salazar, Salazar! De mãozinha esticada. Aqui lo
fazia lembrar Hitler e a II Guerra de que o chefe nos tinha defendido, a honra
de não ter combatido o nazismo com os Aliados e ter jogado com um pau de dois
bicos, o coração nas Potências do Eixo, a cabeça na geografia atlântica.
Era preciso poupar o cais e o apeadeiro
chamados Portugal. Arlequi m que
serve a dois amos, eis a essência da nossa alma. E Vocelências que me
desculpem, que já vou saindo desta crónica de cachaço rente ao chão e pela
porta de serviço. Sem ofensa.”
Clara Ferreira Alves
NOTA - Um pouco mais velho do que Clara Ferreira Alves (ela terá apenas os seus 57 anos) posso testemunhar que o Portugal de Salazar era exactamente como ela o descreve. Infelizmente a situação dos portugueses é hoje tão desesperada em termos de futuro que há a tentação de o ressuscitar. É verdade que há portugueses e portuguesas que não comem ou comem abaixo das suas necessidades, e quem o diz é Isabel Jonet, do Banco Alimentar contra a Fome, que conhece bem essa realidade, e esses podem perguntar de que lhes serve a liberdade, a democracia e a Comunidade Europeia se não têm trabalho nem de comer.
O Portugal de hoje não tem qualquer comparação com o Portugal do ano que nasceu Clara Ferreira Alves e por isso o melhor é deixar Salazar exactamente onde está. Ele era um político que sem o dizer desprezava o povo. A bem dizer, sob aquela capa de senhor bonzinho desprezava todos, em graus diferentes consoante consoante a importância social, económica e financeira de cada um.
Gostar...gostar... apenas dele.
Temos hoje, descontada a craveira intelectual, um Presidente da República que se lhe assemelha na tramóia de enganar o povo sobre a sua verdadeira personalidade mas esse, temos a garantia de que não terá necessidade de cair da cadeira para nos vermos livres dele.
Os políticos, como não podia deixar de ser, têm uma grande cota parte de responsabilidade naquilo que somos e na situação em que nos encontramos, pelos exemplos que deram e pela forma como nos governaram ao longo dos tempos, e não de hoje ou de ontem, e Salazar tem lugar destacadíssimo nessa responsabilidade.
Clara Ferreira Alves dá-nos um lamiré do Portugal de Salazar.
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