quinta-feira, junho 20, 2013

SERÁ DEUS

UM CONSOLO?
(continuação) -  IV Parte


Em 1903 o Papa Pio X ainda tinha uma tabela para calcular o número de dias de remissão do purgatório que cada membro da hierarquia tinha direito a receber: 200 dias os cardeais, os arcebispos 100 dias e os bispos uns meros 50.

No entanto, por essa altura, as indulgências já não eram vendidas directamente a troco de dinheiro. E mesmo na Idade Média, o dinheiro não era a única moeda com que se podia comprar liberdade condicional para fugir ao purgatório.

Também se podia pagar com orações, que tanto podiam ser orações nossas, ditas antes de morremos, como rezadas por outras pessoas em nossa intenção após a nossa morte.

Mas as orações compravam-se com dinheiro. Quem fosse rico podia garantir o futuro da sua alma para todo o sempre. Centenas de benfeitores medievais morreram na crença de que os seus herdeiros, bem pagos para tanto, rezariam pelas suas almas presas no purgatório.

Não consigo deixar de perguntar a mim próprio que percentagem de tesouros artísticos e arquitectónicos da Europa Medieval não terão começado por ser pagamentos com os olhos postos na eternidade em legados entretanto traídos pelos respectivos depositários.

Mas o que verdadeiramente me fascina na doutrina do purgatório são as «provas» com que os teólogos as fundamentam: provas tão espectacularmente débeis que tornam ainda mais cómico o arrojo com que são afirmadas.

A Enciclopédia Católica, logo à entrada referente ao purgatório, contém uma secção chamada «provas» em que a evidência principal para a existência do purgatório é a seguinte:

 - Se os mortos fossem simplesmente para o céu ou para o inferno com base nos pecados que cometeram na Terra, não fazia sentido rezar por eles. «Pois porquê rezar pelos mortos, se não houver uma crença no poder da oração para proporcionar refrigério àqueles que estavam excluídos do olhar de Deus». E nós rezamos pelos mortos, não é verdade? Portanto, o purgatório deve existir, caso contrário as nossas orações não fariam sentido!

Este é bem um exemplo daquilo que, nas mentes dos teólogos, possa parecer raciocínio lógico.

Esta gritante falta de lógica reflecte-se, a uma escala mais ampla, noutra utilização comum do argumento do consolo.

Tem de haver um Deus, diz este argumento, porque senão houvesse a vida seria vazia, absurda, fútil, uma absoluta ausência de significado.

Será necessário salientar que a lógica cai, desde logo, por terra? Talvez a vida seja mesmo vazia. Talvez as nossas orações pelos mortos sejam mesmo desprovidas de sentido. Presumir o contrário é presumir a verdade da própria conclusão que se procura provar.

O alegado silogismo é de uma circularidade transparente. Vejamos: a vida de um viúvo pode muito bem ser intolerável, estéril e vazia, mas não é por isso que a esposa vai deixar de estar morta.

Há qualquer coisa de infantil na presunção de que é a terceiros – pais, no caso das crianças e Deus, no caso dos adultos – que cabe a responsabilidade de dar significado e um propósito às nossas vidas.

Por que é que outrem há-de ser responsável pelo meu bem-estar?

Será que por detrás da necessidade de um Deus não há um infantilismo idêntico ao que se revela quando em criança nos magoamos e olhamos em volta à procura de alguém a quem culpar…?

Pelo contrário, a visão verdadeiramente adulta consistirá em entender que a nossa vida é tão significativa, tão plena e tão maravilhosa quanto nós quisermos.

Richard Dawkins
(continua)

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