UM CONSOLO?
(continuação) - IV Parte
Em 1903 o Papa Pio X ainda tinha uma
tabela para calcular o número de dias de remissão do purgatório que cada membro
da hierarqui a tinha direito a
receber: 200 dias os cardeais, os arcebispos 100 dias e os bispos uns meros 50.
No entanto, por essa altura, as
indulgências já não eram vendidas directamente a troco de dinheiro. E mesmo na
Idade Média, o dinheiro não era a única moeda com que se podia comprar
liberdade condicional para fugir ao purgatório.
Também se podia pagar com orações, que
tanto podiam ser orações nossas, ditas antes de morremos, como rezadas por
outras pessoas em nossa intenção após a nossa morte.
Mas as orações compravam-se com
dinheiro. Quem fosse rico podia garantir o futuro da sua alma para todo o
sempre. Centenas de benfeitores medievais morreram na crença de que os seus
herdeiros, bem pagos para tanto, rezariam pelas suas almas presas no
purgatório.
Não consigo deixar de perguntar a mim
próprio que percentagem de tesouros artísticos e arqui tectónicos
da Europa Medieval não terão começado por ser pagamentos com os olhos postos na
eternidade em legados entretanto traídos pelos respectivos depositários.
Mas o que verdadeiramente me fascina na
doutrina do purgatório são as «provas» com que os teólogos as fundamentam:
provas tão espectacularmente débeis que tornam ainda mais cómico o arrojo com
que são afirmadas.
A Enciclopédia Católica, logo à entrada
referente ao purgatório, contém uma secção chamada «provas» em que a evidência
principal para a existência do purgatório é a seguinte:
-
Se os mortos fossem simplesmente para o céu ou para o inferno com base nos
pecados que cometeram na Terra, não fazia sentido rezar por eles. «Pois porquê
rezar pelos mortos, se não houver uma crença no poder da oração para
proporcionar refrigério àqueles que estavam excluídos do olhar de Deus». E nós
rezamos pelos mortos, não é verdade? Portanto, o purgatório deve existir, caso
contrário as nossas orações não fariam sentido!
Este é bem um exemplo daqui lo que, nas mentes dos teólogos, possa parecer
raciocínio lógico.
Esta gritante falta de lógica
reflecte-se, a uma escala mais ampla, noutra utilização comum do argumento do
consolo.
Tem de haver um Deus, diz este
argumento, porque senão houvesse a vida seria vazia, absurda, fútil, uma
absoluta ausência de significado.
Será necessário salientar que a lógica
cai, desde logo, por terra? Talvez a vida seja mesmo vazia. Talvez as nossas
orações pelos mortos sejam mesmo desprovidas de sentido. Presumir o contrário é
presumir a verdade da própria conclusão que se procura provar.
O alegado silogismo é de uma
circularidade transparente. Vejamos: a vida de um viúvo pode muito bem ser
intolerável, estéril e vazia, mas não é por isso que a esposa vai deixar de estar
morta.
Há qualquer coisa de infantil na
presunção de que é a terceiros – pais, no caso das crianças e Deus, no caso dos
adultos – que cabe a responsabilidade de dar significado e um propósito às
nossas vidas.
Por que é que outrem há-de ser
responsável pelo meu bem-estar?
Será que por detrás da necessidade de um
Deus não há um infantilismo idêntico ao que se revela quando em criança nos
magoamos e olhamos em volta à procura de alguém a quem culpar…?
Pelo contrário, a visão verdadeiramente
adulta consistirá em entender que a nossa vida é tão significativa, tão plena e
tão maravilhosa quanto nós qui sermos.
Richard Dawkins
(continua)
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