segunda-feira, janeiro 06, 2014

Era um morto pouco apresentável...
A MORTE

E A MORTE

DE QUINCAS

BERRO DÁGUA

Episódio Nº 4



O santeiro coçou o queixo. Porque então? Mas Leonardo não respondeu, foi atender Vanda, que o chamava do quarto.

 - É preciso avisar…

 - Avisar? A quem? Para quê?

 - A tia Marocas e o tio Eduardo… Aos vizinhos, convidar para o enterro…

 - Para que avisar logo aos vizinhos? Depois a gente conta. Senão vai ser um converseiro danado…

 - Mas tia Marocas…

 - Falo com ela e Eduardo… Depois de passar na Repartição. Anda depressa senão esse que veio trazer a notícia sai por aí espalhando…

 - Quem diria… Morrer assim, sem ninguém…

 - De quem a culpa? Dele mesmo, maluco…

Na sala, o santeiro admirava um colorido retrato de Quincas, antigo, de uns quinze anos, senhor bem posto, colarinho alto, gravata preta, bigodes de ponta, cabelo lustroso, e faces róseas.

Ao lado, em moldura idêntica, o olhar acusador e a boca dura, Dª Octacília, num vestido preto, de rendas.

O santeiro estudou a fisionomia azeda. Devia ser um osso duro de roer… Santa mulher. Não acredito…


III


Umas poucas pessoas, gente da Ladeira, espiavam o cadáver quando Vanda chegou. O santeiro informava em voz baixa:

- É a filha. Tinha filha, genro, irmãos. Gente distinta. O genro é funcionário, mora em Itapagipe. Casa de primeira…

Afastavam-se para ela passar, curiosos de vê-la lançar-se sobre o cadáver, abraçá-lo, envolver-se em lágrimas, as calças velhas e remendadas, a camisa aos pedaços, um seboso e enorme colete, sorria como estivesse a divertir-se.

Vanda ficou imóvel olhando o rosto de barba por fazer, as mãos sujas, e dedo grande do pé saindo da meia furada. Não tinha mais lágrimas para chorar nem soluços com que encher o quarto, desperdiçadas umas e outras nos primeiros tempos da maluquice de Quincas, quando ela fizera tentativas reiteradas de trazê-lo de volta à casa abandonada. Agora apenas olhava, o rosto ruborizado de vergonha.

Era um morto pouco apresentável, cadáver de vagabundo falecido ao azar, sem decência na morte, sem respeito, rindo-se cinicamente, r4indo-se dela, com certeza de Leonardo, do resto da família.


Cadáver para necrotério, para ir no rabecão da polícia servir depois aos alunos da Faculdade de Medicina nas aulas práticas, ser finalmente enterrado em cova rasa, sem cruz e sem inscrição.

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