terça-feira, janeiro 21, 2014

Quincas tornou-se inquieto...
A MORTE
E A MORTE
DE
QUINCAS
BERRO
DÁGUA

Episódio Nº 17

Deve-se dizer, a bem da verdade, que não estavam eles ainda bêbados. Haviam tomado seus tragos, sem dúvida, na comoção da notícia, mas o vermelho dos olhos era devido às lágrimas derramadas, à dor sem medidas, e o mesmo pode afirmar-se da voz embargada e do passo vacilante.

Como conservar-se completamente lúcido quando morre um amigo de tantos anos, o melhor dos companheiros, o mais completo vagabundo da Baía?

Quanto à garrafa que o Cabo Martim teria escondido sob a camisa, nada ficou jamais provado.

Naquela hora do crepúsculo, do misterioso começo da noite, o morto parecia um tanto ou quanto cansado. Vanda dava-se conta. Não era para menos: passara ele a tarde a rir, a murmurar nomes feios, a fazer-lhe caretas.

Nem mesmo quando chegaram Leonardo e o tio Eduardo, por volta das cinco, nem mesmo então Quincas repousou. Insultava Leonardo, “paspalhão”, ria de Eduardo.

Mas quando as sombras do crepúsculo desceram sobre a cidade, Quincas tornou-se inquieto. Como se esperasse alguma coisa que tardava a vir.

Vanda, para esquecer e iludir-se, conversava animadamente com o marido e os tios evitando fitar o morto. Seu desejo era voltar para casa, descansar, tomar um comprimido que a ajudasse a dormir.

Porque seria que os olhos de Quincas ora se voltavam para a janela ora para a porta?

A notícia não alcançara os quatro amigos ao mesmo tempo. O primeiro a saber foi Curió. Empregava ele seus múltiplos talentos na propaganda de lojas da Baixa do Sapateiro.

Vestido com um velho fraque surrado, a cara pintada, postava-se na porta de uma loja, contra mísero pagamento, a louvar-lhe a barateza e as virtudes, a parar os passantes dizendo-lhes graçolas, convidando-os a entrar, quase arrastando-os à força.

De quando em vez, quando a sede apertava – emprego danado para secar a garganta e o peito – dava um pulo num botequim próximo, tomava um trago para temperar a voz.

Numa dessas idas e vindas a notícia o alcançou, brutal como um soco no peito, deixando-o mudo. Voltou cabisbaixo, entrou na loja, avisou o sírio que não contasse mais com ele naquela tarde.

Curió era ainda moço, alegrias e tristezas afectavam-no profundamente. Não podia suportar sozinho o choque terrível. Precisava da companhia dos outros íntimos, da turma habitual.

A roda, em frente à rampa dos saveiros, na feira nocturna de Água dos Meninos aos sábados, nas Sete Portas, nas exibições de capoeira na Estrada da Liberdade, era quase sempre numerosa. Marítimos, pequenos comerciantes do Mercado, babalaôs, capoeiristas, malandros, participavam das longasd conversas, das movimentadas partidas de baralho, das pescarias sob a lua, das farras na zona.

Numerosos admiradores e amigos possuía Quincas Berro Dágua, mas aqueles quatro eram os inseparáveis. 

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