...há já quinze dias que não me vê... |
A Minha Avó
Pequenina
Pequenina
E o Sr. Fialho
Gouveia
Gouveia
O meu pai foi a primeira pessoa lá na aldeia a ter uma televisão, mesmo antes de qualquer uma das várias tabernas que à noite funcionavam como cafés.
Lembro-me perfeitamente dela, era alemã, marca SABA, rectangular
e acastanhada, estávamos em 1958. Foi colocada num armazém que também servia de
sala de jantar e à frente, bancos corridos para as pessoas da aldeia poderem
assistir à emissão a troco de 5 tostões que o meu pai justificava para a
limpeza do chão.
A
minha avó tinha direito a tratamento VIP numa cadeirinha de vime, pequeninas, daquelas
que eram próprias para as pessoas se sentarem à lareira, colocada na primeira
fila, mesmo em frente do aparelho.
Nunca me esquecerei da expressão do seu rosto
quando assistia às imagens da televisão que ela, mais que via, admirava com um
olhar que não escondia um brilhozinho de uma tranqui la
vitória.
Nascera
ainda bem dentro do século XIX e toda a sua vida decorrera num raio de uma centena
de metros levantando-se com o sol para fazer comida para a família, para os
homens do lagar no tempo da azeitona, tratar dos animais de que os dois porcos
na pocilga tinham lugar de destaque e cuidar da casa que pouco mais era do que
tratar do lume com a ajuda de uma criada, jovem moça lá da aldeia.
Só muito recentemente a electricidade tinha chegado
dispensando-a da preparação cuidada dos candeeiros a petróleo para a noite
seguinte, desde a limpeza das chaminés com papel de jornal, encher o depósito e
afinar a torcida cortando a parte queimada e deixando-a direitinha com os cantos arredondados
O seu mundo era muito pequenino: as pessoas chegadas da família
de que ela vira partir dois filhos, o Manuel com cancro, mais velho e o Luís, o
mais novo, com tuberculose. O meu avô, já falecido, muitos anos preso a uma
cadeira de rodas, também já fazia parte do passado.
E agora, aí a tínhamos à frente da televisão da qual, dizia
ela, gostava de tudo: as variedades com o Camilo de Oliveira, o teatro com a
Srª Dª. Palmira Bastos ou o cinema com o Sr. Vasco Santana, mas percebia-se que
tinha uma especial simpatia para com o Sr. Fialho Gouveia que diariamente a
olhava nos olhos e lhe lia as notícias, coisa que ela apreciava mais que todos os
outros espectáculos.
Um dia, a minha avó adoeceu porque embora sendo uma mulher saudável, de gripes e constipações ninguém estava a salvo, doentes ou não e por isso, durante 15 dias, não ocupou o lugarzinho que lhe estava reservado.
Finalmente, sentindo-se em condições, saíu de sua casa, atravessou a estrada e lá foi ocupar o lugar que lhe ficara reservado na casa do meu pai.
Um dia, a minha avó adoeceu porque embora sendo uma mulher saudável, de gripes e constipações ninguém estava a salvo, doentes ou não e por isso, durante 15 dias, não ocupou o lugarzinho que lhe estava reservado.
Finalmente, sentindo-se em condições, saíu de sua casa, atravessou a estrada e lá foi ocupar o lugar que lhe ficara reservado na casa do meu pai.
Como
era da boa educação, antes da emissão começar já todos deveriam estar sentados
e em silêncio. Da
mira técnica passava-se ao hino da televisão e de seguida começava a
programação a que eu assistia sempre ao lado da minha avó para a poder atender
nalguma pergunta que me qui sesse
fazer, o que era raro.
A minha avó era daquelas mulheres que gostava de
passar despercebida. Em toda a sua vida habituou-se, talvez influenciada pela
personalidade dominadora do meu avô, a ouvir e calar. No seu caso, não só por
uma questão cultural mas também por ser essa a sua maneira de estar na vida.
Eu
adorava-a porque era a minha avó, porque era pequenina e pelos seus silêncios
que me pareciam esconder um mundo que ela, com o seu quê de mistério, guardava
só para si.
Mas nessa primeira noite depois da ausência de
todos aqueles dias, a minha avó parecia-me algo ansiosa, pelo menos não
aguardava com a serenidade do costume o início da emissão.
De repente, enchendo-se de coragem e vencendo
alguma espécie de pudor, puxou-me para ao pé dela e meio em segredo,
confidenciou-me:
- “Ah, o Sr. Fialho Gouveia naturalmente vai
estranhar… há já qui nze dias que não
me vê...”
Não me lembro do que lhe disse mas a esta
distância só espero e desejo que não lhe tenha dito nada.
Mais tarde, já depois de ter morrido, soube por outras
pessoas que ela às escondidas, com muita descrição, ajudava com comida as
mulheres mais pobres da aldeia.
A
minha avó pequenina… como carinhosamente lhe chamava.
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