terça-feira, abril 15, 2014

...há já quinze dias que não me vê...
A Minha Avó

Pequenina

E o Sr. Fialho

Gouveia








O meu pai foi a primeira pessoa lá na aldeia a ter uma televisão, mesmo antes de qualquer uma das várias tabernas que à noite funcionavam como cafés.

Lembro-me perfeitamente dela, era alemã, marca SABA, rectangular e acastanhada, estávamos em 1958. Foi colocada num armazém que também servia de sala de jantar e à frente, bancos corridos para as pessoas da aldeia poderem assistir à emissão a troco de 5 tostões que o meu pai justificava para a limpeza do chão.

A minha avó tinha direito a tratamento VIP numa cadeirinha de vime, pequeninas, daquelas que eram próprias para as pessoas se sentarem à lareira, colocada na primeira fila, mesmo em frente do aparelho.

Nunca me esquecerei da expressão do seu rosto quando assistia às imagens da televisão que ela, mais que via, admirava com um olhar que não escondia um brilhozinho de uma tranquila vitória.


Nascera ainda bem dentro do século XIX e toda a sua vida decorrera num raio de uma centena de metros levantando-se com o sol para fazer comida para a família, para os homens do lagar no tempo da azeitona, tratar dos animais de que os dois porcos na pocilga tinham lugar de destaque e cuidar da casa que pouco mais era do que tratar do lume com a ajuda de uma criada, jovem moça lá da aldeia.

Só muito recentemente a electricidade tinha chegado dispensando-a da preparação cuidada dos candeeiros a petróleo para a noite seguinte, desde a limpeza das chaminés com papel de jornal, encher o depósito e afinar a torcida cortando a parte queimada e deixando-a direitinha com os cantos arredondados

O seu mundo era muito pequenino: as pessoas chegadas da família de que ela vira partir dois filhos, o Manuel com cancro, mais velho e o Luís, o mais novo, com tuberculose. O meu avô, já falecido, muitos anos preso a uma cadeira de rodas, também já fazia parte do passado.

E agora, aí a tínhamos à frente da televisão da qual, dizia ela, gostava de tudo: as variedades com o Camilo de Oliveira, o teatro com a Srª Dª. Palmira Bastos ou o cinema com o Sr. Vasco Santana, mas percebia-se que tinha uma especial simpatia para com o Sr. Fialho Gouveia que diariamente a olhava nos olhos e lhe lia as notícias, coisa que ela apreciava mais que todos os outros espectáculos.

Um dia, a minha avó adoeceu porque embora sendo uma mulher saudável, de gripes e constipações ninguém estava a salvo, doentes ou não e por isso, durante 15 dias, não ocupou o lugarzinho que lhe estava reservado.

Finalmente, sentindo-se em condições, saíu de sua casa, atravessou a estrada e lá foi ocupar o lugar que lhe ficara reservado na casa do meu pai.

Como era da boa educação, antes da emissão começar já todos deveriam estar sentados e em silêncio. Da mira técnica passava-se ao hino da televisão e de seguida começava a programação a que eu assistia sempre ao lado da minha avó para a poder atender nalguma pergunta que me quisesse fazer, o que era raro.

A minha avó era daquelas mulheres que gostava de passar despercebida. Em toda a sua vida habituou-se, talvez influenciada pela personalidade dominadora do meu avô, a ouvir e calar. No seu caso, não só por uma questão cultural mas também por ser essa a sua maneira de estar na vida.


Eu adorava-a porque era a minha avó, porque era pequenina e pelos seus silêncios que me pareciam esconder um mundo que ela, com o seu quê de mistério, guardava só para si.

Mas nessa primeira noite depois da ausência de todos aqueles dias, a minha avó parecia-me algo ansiosa, pelo menos não aguardava com a serenidade do costume o início da emissão.



De repente, enchendo-se de coragem e vencendo alguma espécie de pudor, puxou-me para ao pé dela e meio em segredo, confidenciou-me:


- “Ah, o Sr. Fialho Gouveia naturalmente vai estranhar… há já quinze dias que não me vê...”

Não me lembro do que lhe disse mas a esta distância só espero e desejo que não lhe tenha dito nada.


Mais tarde, já depois de ter morrido, soube por outras pessoas que ela às escondidas, com muita descrição, ajudava com comida as mulheres mais pobres da aldeia.

A minha avó pequenina… como carinhosamente lhe chamava.

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