O MEU TESTEMUNHO
Quando, há anos atrás, vi o primeiro episódio da saga de Joa
Os anos cavam uma distância que dá
profundidade às lembranças e 50 anos depois as imagens desprendem-se dos seus
protagonistas, ganham vida própria e entram para uma espécie de arqui vo histórico mesmo de quem as viveu.
Bastava, de resto, reparar que os jovens
que protagonizaram aquelas cenas já pouco tinham a ver com os senhores de idade
que tendo tido a sorte de sobreviver, enriqueceram agora, com o seu testemunho,
sóbrio e distanciado, as imagens que apenas davam uma pequena amostra da
barbárie dos massacres e da violência de uma guerra traiçoeira.
Cheguei ao Úcua a 11 de Novembro de 1962
integrado no Batalhão de Caçadores 381, meses depois do massacre pelos
guerrilheiros da UPA dos civis que ali viviam e trabalhavam e da vingança dos
brancos que, posteriormente, fuzilaram os negros que drogados avançavam em
direcção às balas das metralhadoras montadas sobre os jipes gritando, meio
enlouquecidos, que “as balas dos brancos eram “maza” (àgua).
Uma loucura, uma autêntica loucura a que
muitos não resistiram e acabaram por engrossar os espaços do Hospital
Psiquiátrico de Luanda e hoje, alguns deles, já quase uma vida passada,
continuam a sofrer os seus efeitos.
A esta distância tudo é estranho e esqui sito e a palavra que mais me ocorre é:
lamentável.
Meses antes do massacre dos colonos
brancos no norte de Angola a 15 de Março de 1961, tinha estado de visita a
Angola integrado numa viagem de fim de curso do ICSPU chefiada pelo Prof.
Hermano Saraiva, o mesmo que ainda hoje apresenta programas sobre a História
Portuguesa.
Na região dos Dembos fomos recebidos
pelos fazendeiros com a hospitalidade própria das gentes do norte de Portugal
que, na ignorância do que lhes iria acontecer pouco tempo mais tarde, ouviram,
encantados, o discurso inflamado de patriotismo do Prof. Saraiva.
O mesmo Sr. Professor que não teve
coragem de prosseguir até ao fim a visita à Baixa do Kassange, no distrito de
Malange, depois de nos termos cruzado com dois homens que ali eram obrigados a
trabalhar para a Cotonang (Consórcio de capitais portugueses, ingleses e
alemães) na cultura do algodão e que transportavam para o Hospital, a
quilómetros de distancia, numa padiola, uma mulher e uma criança todos eles num
estado sub-humano o que nos levou a inverter a marcha e a levá-los ao destino.
O clima muito quente e de elevada
humidade favorecia a cultura do algodão mas a sua exploração só era possível
pelo recurso ao trabalho dos indígenas que para ali eram recrutados à força e
mantidos num regime muito perto da escravatura pois não só eram obrigados a
cultivar o algodão como a vendê-lo à Cotonang ao preço que esta fixava e que
era baixíssimo.
Poucos meses depois daquele encontro, a
4 de Janeiro de 1961, registou-se ali uma revolta que se saldou pela morte de
milhares de trabalhadores que reivindicavam melhores condições de trabalho,
isenção do pagamento de impostos e a abolição do trabalho forçado.
Anos mais tarde, talvez 1977, numa
visita a uma grande fábrica de fiação no nosso país, percebi que aquele algodão,
produzido naquelas condições desumanas e adqui rido
a preços fora da concorrência, tinha ajudado a viabilizar uma empresa que se
mantivera a trabalhar com equi pamento
dezenas de anos ultrapassado e que agora se mostrava incapaz de competir numa
situação de concorrência normal.
Em última análise, o sacrifício da vida
daqueles milhares de trabalhadores tinha sido inútil, de resultados
contraproducentes que poderiam ser extensivos a toda a exploração colonial.
Bem se poderia dizer que, mais uma vez,
o crime não compensa.
A
política irresponsável e criminosa de um ditador, uma Administração cúmplice,
cobarde e servil e uns milhares de colonos, voluntaristas, gente simples e de
trabalho mas desinformadas, manipuladas e incapazes de compreenderem que o
quadro para onde as suas vidas se tinham encaminhado estava transformado numa armadilha fatal.
E tudo isto foi possível de acontecer
por duas razões: uma, de raiz comezinha, evidente e que não foi percebida por
quase um país inteiro: Aquela não era
a nossa terra e aquela gente não era a nossa!
Viviam num Continente diferente, falavam
línguas diferentes, a sua organização política e social era diferente como o
eram, igualmente, a sua história e as suas crenças.
Nada tinham em comum connosco e não me
consta que tenham solicitado a nossa presença para os governar.
A segunda razão, é que toda a gente ignorou
os avisos, os sinais, as informações sobre o que iria acontecer, especialmente
as mais altas autoridades administrativas de Angola que nada fizeram perante os
ouvidos moucos do governo de Lisboa.
Talvez Salazar estivesse à espera do que
inevitavelmente iria acontecer para poder mostrar depois, na Assembleia-Geral
da Nações Unidas, as fotografias das pessoas trucidadas e assim justificar a
necessidade da presença dos portugueses em África.
A legitimidade da guerra não era
levantada pela generalidade dos soldados que me acompanharam, na sua maioria
pouco menos que analfabetos, mas os seus desabafos e queixumes à boca calada
diziam muito, em termos reprovadores, do que lhes ia na alma sobre aquela
guerra e que era muito diferente, pela certa, do que teriam dito se estivessem
a defender a sua terra e a sua gente.
Satisfaz-me a ideia de que tudo fiz para
os proteger mas, honestamente, tenho que admitir que o acaso nos foi muito
favorável e sem a sua ajuda não teria sido possível regressarmos todos.
Acima de tudo o país foi vítima de um
grande logro ao qual se juntaram, ao longo dos anos a seguir ao início da
guerra, um cortejo enorme de mentiras produzidas por generais e políticos que
os deviam ter feito corar de vergonha.
Mas não havia outra saída, as mentiras
alimentam-se umas às outras e o desfecho só poderia ter sido o que foi: o
regresso em massa de mais de 500.000 portugueses desorientados, confusos,
alguns deles, os mais velhos, incapazes de resistir ao infortúnio mas, na
generalidade dos casos, a integração foi possível e aconteceu de uma forma mais
fácil e rápida do que se poderia pensar numa demonstração de vitalidade que
talvez ajude a explicar muita coisa neste país de 8 séculos de existência.
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