O Título de Vasco era dos verdadeiros |
OS VELHOS
MARINHEIROS
Episódio Nº 59
Da navegação astronómica ao Direito Internacional Marítimo, capítulo extremamente erudito.
Durante um mês riu às gargalhadas o
Comandante Georges Dias Nadreau, gozando o nervosismo de Vasco, seu esforço de
aluno aplicado, cobrando-se assim do favor que lhe prestava.
Divertiam-se também o coronel, Jerónimo
e Lídio, o Tenente Mário e o Tenente Garcia. Vasco chegara a emagrecer, tanto
zelo empregava na tarefa de decorar as respostas complicadas às três perguntas
de cada matéria, repletas de sextantes, ventos e correntes marítimas, fretes,
mares territoriais e mares internos, higrómetros, indicações magnéticas, uma
confusão.
Todas as tardes, por ordem expressa do
comandante, submetiam o alarmado candidato a uma sabatina. A princípio, Vasco
embrulhava-se nas palavras desconhecidas, a memória refractária àqueles termos
arrevesados, o Tenente Garcia ameaçando reprová-lo. Era um custo levá-lo para o
bilhar, o poker, as mulheres, queria Vasco gastar as noites no estudo.
Mário e Garcia viveram à tripa forra
durante aqueles trinta dias. Vasco convidava-os diariamente para jantar,
pagava-lhes aperitivos, vinho português do bom e do melhor, ceias na Pensão
Monte Carlo.
Pouco a pouco foi-se assenhorando das
respostas, familiarizando-se com os nomes esdrúxulos dos instrumentos de bordo.
Na Capitania dos Portos, o Tenente Mário mostrou-lhe um dia alguns daqueles
objectos, Vasco entusiasmou-se. Pareciam-lhe belos e apaixonantes, começava a
amar sua nova profissão.
O pior de tudo foi ter de copiar, com
sua letra, o trabalho elaborado pelo Tenente Mário, “sua tese de formatura”,
como costumava dizer.
Longo, de trinta e duas páginas de
escrita incompreensível, como se o rapaz fosse médico e não oficial da Marinha,
e cheio de borrões.
Passava as manhãs a copiá-lo, trancado
na sala, a criada proibida de abrir a porta para quem quer que fosse.
Entregue e aprovado o trabalho,
marcou-se finalmente o dia do exame oral. Cerimónia solene, com o coronel
presente e fardado, Dr. Jerónimo e o Tenente Lídio Marinho.
Marinheiros em posição de sentido guardavam a
porta da sala, onde a banca examinadora, constituída pelo Comandante Nadreau e
os dois joviais tenentes da Marinha, sentava-se cheio de gravidade ante a
grande mesa repleta de objectos e mapas.
Pálido e emocionado, Vasco foi introduzido por
um marinheiro, repetindo em voz baixa, numa última rememoração, as perguntas e
respostas.
Ouviu seu nome proclamado enfaticamente
por Georges, aproximou-se, sentou-se rígido na cadeira em frente à mesa, o
coração aos saltos. Mas as respostas saíram-lhe fáceis e correctas, sem um
erro, sem um deslize de pronúncia sequer.
Aprovado plenamente, o diploma foi
expedido, assentados num livro da Capitania dos Portos o nome e o endereço do
novo capitão de longo curso.
Cada vez que mudasse de casa devia
comunicar à Capitania a nova residência. Era um livro grosso, de capa verde e
encadernada, com as armas da República.
Em cada página um nome, com a data do
concurso, a qualidade da aprovação, números e referências, a idade, o estado
civil, o endereço do titular.
Poucas páginas preenchidas, uns quantos
nomes apenas antes do nome de Vasco. E quase todos possuidores apenas de
“cartas de borracha” como eram chamados os títulos dos comandantes de navios
fluviais, para cuja obtenção dispensava-se o trabalho escrito e reduzia-se o
exame oral.
Eram esses títulos facilitados aos
comandantes de barcos a vapor no rio São Francisco, aos quais era vedada a
navegação marítima, os caminhos do oceano.
O
título de Vasco era dos verdadeiros, dava-lhe o domínio dos rios, dos grandes
lagos e dos mares, estava autorizado e tinha direito a comandar navios de todas
as nacionalidades e bandeiras, em todas as rotas, nos cinco oceanos. Armado com
o Direito Internacional Marítimo e a ciência da navegação astronómica.
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