sábado, abril 26, 2014

"Um marinheiro não se dobra à tristeza"
OS VELHOS

MARINHEIROS

Episódio Nº 64











Caía a tarde sobre o Largo da Sé, o sangue do crepúsculo nas pedras negras da velha igreja. Vasco tomava da mão de Liú, iniciava sua viagem.


Do passar do tempo e das mudanças no governo e na firma, com falcatruas e uma crista erguida


Cumpriu sua promessa o Comandante Vasco Moscoso de Aragão: nunca mais apareceu diante do Comandante Georges Dias Nadreau de crista caída.

Tinha seu título, era feliz, nenhum desgosto, nenhuma dificuldade pôde turvar-lhe daí por diante a radiosa expressão, a exuberante alegria.

Por um breve minuto podia irritar-se ou entristecer-se mas logo voltava ao seu natural folgazão, sem dar tempo à tristeza, sem dar maior importância às contrariedades da vida.

Tristezas e contrariedades não faltaram, no entanto. Mas um comandante de navios, um capitão de longo curso habitua-se, na esteira das ondas, à inconstância do mar e do tempo, forja seu carácter e enrijece seu coração, torna-se apto a enfrentar, com um sorriso nos lábios, as decepções e os desgostos.

Desgosto dos maiores, o primeiro a suceder, foi a transferência de Georges Dias Nadreau, promovido e enviado para o comando de um destroyer.

Como imaginar a noite da Bahia, as pensões e os castelos, a boémia, as mulheres, a magia do amor, sem a presença do marinheiro de cabelos loiros de trigo, de olhos de azul-celeste, inventando blagues, caçoadas, pilhérias divertidas, sempre às voltas com uma negra ou mulata escura?

 Quando a notícia circulou entre o mulherio e os noctívagos, foi geral a consternação, houve lágrimas e lamentações e preparou-se uma despedida digna de Georges.

- Levanta a crista, Comandante - disse Georges a Vasco quando o viu, na noite da festa de adeus, carrancudo e calado. - Um marinheiro não se dobra à tristeza.

Foram todos, no dia seguinte, levá-lo a bordo do paquete no qual viajava para o Rio e viram pela primeira vez Gracinha, a esposa, de luto fechado, o macerado rosto coberto por negro véu, os lábios trancados.

Estendeu-lhes, na apresentação, as pontas de dois dedos gélidos. Vasco compreendeu então não ser uma frase oca de sentido aquela pronunciada na véspera pelo antigo capitão dos portos.

 “Um marinheiro não se dobra à tristeza”, as palavras de Georges adquiriam uma brusca significação concreta, ele não se dobrara à tristeza, não se entregara vencido.

Voltaram para o centro, foram para o bilhar, mas já não era a mesma coisa. A ausência de Georges povoava o bar, a Pensão Monte Carlo depois, a noite ficara subitamente vazia.

Já um ano antes casara-se o Tenente Lídio Marinho e, por uns tempos, desaparecera de circulação. Mas todos sabiam ser passageira sua ausência, voltaria quando a vida de casado entrasse na normalidade e assim aconteceu.

 Ao findar-se o expediente em Palácio, aparecia para o bilhar e, na maioria das noites, juntava-se novamente a eles após o jantar, ia arrastar os pés na Pensão, por vezes trancava-se com uma pequena, continuava a ter apaixonadas nos castelos.

A esposa era para dar-lhe filhos, cuidar da casa, receber as visitas. Georges, porém, fora de vez, era partida sem regresso, reuniria outra turma no Rio, colegas do navio, amigos diferentes. Foi uma noite difícil, mas Vasco recordava a frase e via a figura dilacerante de Gracinha, animava os outros, um marinheiro não se entrega à tristeza.

O novo capitão dos portos, o substituto de Georges, capaz talvez de assumir seu lugar na turma, tardou meses a chegar e foi uma completa decepção: sujeito arredio, pouco dado a amizades, tendo horror às noitadas, às mulheres da vida, circunspecto e sisudo. Vasco deixou de frequentar a Capitania. 

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