QUE ME FOI REVELADA
Meu Aspirante, quando cheguei à idade de ser menino só me sentia atraído por outros meninos, as meninas nunca me disseram nada, eram-me completamente indiferentes.
Recordo esta conversa como a abordagem mais importante sobre a homossexualidade que tive em toda a minha vida.
O cenário era a parada do R.I. 16 em Évora, ano de 1961, o contexto, uma recruta para preparar os soldados para a guerra de Angola recentemente iniciada: “…para Angola, Depressa e em Força! … dissera Salazar.
Quem se abria assim comigo era um soldado do meu pelotão de recrutas que nesse dia, por estar magoado num pé, não participava nos exercícios de “ordem unida” que estava a ser ministrada pelos cabos milicianos.
Distraído, como sempre, tinha sido o último a saber e apenas porque um dos cabos resolveu prestar-me a informação, com algum pudor e respeito próprios da época, sobre aquele soldado que estava à minha responsabilidade.
Os tempos eram outros e estas situações constituíam no fim da década de 50, princípios de sessenta, na sociedade fechada, cínica e confessional de Oliveira Salazar, autênticos “bichos-de sete-cabeças”, tantos os tabus e ignorância sobre elas.
Sentado ao meu lado, continuava a desabafar com toda a naturalidade e sinceridade. As palavras, simplesmente, saíam-lhe, percebendo-se através delas uma identidade feminina, sem tom de queixas, aversão ou ressentimento para quem quer que fosse. Falava da sua homossexualidade da mesma forma como falaria da cor dos cabelos ou do jeito do nariz.
Recordo esta conversa como a abordagem mais importante sobre a homossexualidade que tive em toda a minha vida.
O cenário era a parada do R.I. 16 em Évora, ano de 1961, o contexto, uma recruta para preparar os soldados para a guerra de Angola recentemente iniciada: “…para Angola, Depressa e em Força! … dissera Salazar.
Quem se abria assim comigo era um soldado do meu pelotão de recrutas que nesse dia, por estar magoado num pé, não participava nos exercícios de “ordem unida” que estava a ser ministrada pelos cabos milicianos.
Distraído, como sempre, tinha sido o último a saber e apenas porque um dos cabos resolveu prestar-me a informação, com algum pudor e respeito próprios da época, sobre aquele soldado que estava à minha responsabilidade.
Os tempos eram outros e estas situações constituíam no fim da década de 50, princípios de sessenta, na sociedade fechada, cínica e confessional de Oliveira Salazar, autênticos “bichos-de sete-cabeças”, tantos os tabus e ignorância sobre elas.
Sentado ao meu lado, continuava a desabafar com toda a naturalidade e sinceridade. As palavras, simplesmente, saíam-lhe, percebendo-se através delas uma identidade feminina, sem tom de queixas, aversão ou ressentimento para quem quer que fosse. Falava da sua homossexualidade da mesma forma como falaria da cor dos cabelos ou do jeito do nariz.
Os pais tinham-no expulso de casa logo em muito jovem e de toda a família apenas uma irmã, mais sensível e de bom coração, ainda o visitava, provavelmente às escondidas do resto dos parentes.
Trabalhava num restaurante como ajudante de cozinheiro e as conversavas que gostava de ter eram sobre namorados e vestidos, referindo-se a si sempre no feminino:
- “O meu Aspirante já viu o meu tormento a dormir numa camarata de homens e a tomar banho num balneário com eles todos nus”?
As perguntas secaram-se todas na minha garganta, apenas soube o que ele me quis dizer, desabafos naturais da sua vida, estranha e bizonha para mim, inexperiente nos meus 22 anos, recém casado, desconhecedor das realidades de um mundo que era bem maior, complexo e intrigante do que o meu universo heterossexual.
Ainda debaixo do efeito surpresa fui ter com o Capitão, Comandante da Companhia, e pedi-lhe que diligenciasse para que aquele soldado fosse livre da tropa ao abrigo dos Regulamentos mas a resposta que obtive foi seca, brutal, desumana:
- Qual quê, faz jeito aos soldados lá em Angola!
Fiquei a perceber que ele estava destinado a cumprir dois objectivos para com a pátria: “carne para canhão” e “carne para a carne”.
- “Meu Aspirante, eu nasci assim, não tenho culpa”.
Claro que não tinha culpa mas eu nem tive coragem ou expediente para o reconfortar com essas palavras tão simples de dizer:
- “Claro que não, não tiveste a culpa! …”
E no entanto, aquele jovem “sem culpa”, que se abrira para mim em palavras simples e sinceras e me destapou a verdade oculta por vergonha e pudor dos homens “macho”, a maioria dos quais não teria tido a sua força e coragem para sobreviver a tão profundas provações, estava a ser, por parte da família e da sociedade, vítima de um assassinato em vida, de uma destruição lenta que corrói a alma, a personalidade, a própria identidade, no mais injusto dos castigos apenas… “por ser assim”.
Não me interessa partir deste caso para a problemática dos direitos dos homossexuais e do longo e saudável percurso de mais de cinquenta anos percorridos desde o dia dessa conversa até hoje.
Na nossa sociedade, agora, a homossexualidade é um assunto arrumado, discussão esgotada, casamento legalmente autorizado, tudo claro, preto no branco, mas em 1961, na parada do Quartel do Regimento de Infantaria 16, em Évora, era tudo tão diferente!...
Apenas relembrar esse jovem e desejar que ele tenha sobrevivido à guerra e à vida.
Se o conseguiu, a uma e à outra, então é um herói.
Trabalhava num restaurante como ajudante de cozinheiro e as conversavas que gostava de ter eram sobre namorados e vestidos, referindo-se a si sempre no feminino:
- “O meu Aspirante já viu o meu tormento a dormir numa camarata de homens e a tomar banho num balneário com eles todos nus”?
As perguntas secaram-se todas na minha garganta, apenas soube o que ele me quis dizer, desabafos naturais da sua vida, estranha e bizonha para mim, inexperiente nos meus 22 anos, recém casado, desconhecedor das realidades de um mundo que era bem maior, complexo e intrigante do que o meu universo heterossexual.
Ainda debaixo do efeito surpresa fui ter com o Capitão, Comandante da Companhia, e pedi-lhe que diligenciasse para que aquele soldado fosse livre da tropa ao abrigo dos Regulamentos mas a resposta que obtive foi seca, brutal, desumana:
- Qual quê, faz jeito aos soldados lá em Angola!
Fiquei a perceber que ele estava destinado a cumprir dois objectivos para com a pátria: “carne para canhão” e “carne para a carne”.
- “Meu Aspirante, eu nasci assim, não tenho culpa”.
Claro que não tinha culpa mas eu nem tive coragem ou expediente para o reconfortar com essas palavras tão simples de dizer:
- “Claro que não, não tiveste a culpa! …”
E no entanto, aquele jovem “sem culpa”, que se abrira para mim em palavras simples e sinceras e me destapou a verdade oculta por vergonha e pudor dos homens “macho”, a maioria dos quais não teria tido a sua força e coragem para sobreviver a tão profundas provações, estava a ser, por parte da família e da sociedade, vítima de um assassinato em vida, de uma destruição lenta que corrói a alma, a personalidade, a própria identidade, no mais injusto dos castigos apenas… “por ser assim”.
Não me interessa partir deste caso para a problemática dos direitos dos homossexuais e do longo e saudável percurso de mais de cinquenta anos percorridos desde o dia dessa conversa até hoje.
Na nossa sociedade, agora, a homossexualidade é um assunto arrumado, discussão esgotada, casamento legalmente autorizado, tudo claro, preto no branco, mas em 1961, na parada do Quartel do Regimento de Infantaria 16, em Évora, era tudo tão diferente!...
Apenas relembrar esse jovem e desejar que ele tenha sobrevivido à guerra e à vida.
Se o conseguiu, a uma e à outra, então é um herói.
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