Pai fez de mim, sua filha, amásia dele, todo mundo sabe. |
TOCAIA GRANDE
(Jorge Amado)
Episódio Nº 25
Com a mão amassava a saia, único sinal
de constrangimento:
-
De comer não tem em casa, só cachaça. Nós não morreu de fome pro mode o socorro
dos vizinhos e porque eu fui prós matos com quem qui s
me pagar, correndo risco: se Pai chega a saber, tinha me matado.
Natário ouvia sem fazer comentários.
Bernarda fungou, o
choro ameaçava irromper mas ela o
segurou no fundo da garganta, seu ânimo fora temperado em fogo lento. Arregaçou
a ponta do vestido para com ela apagar o ardor da vista.
O
Capitão reparou na coxa maciça, percebeu a curva da bunda; a afilhada comera o
pão que o diabo amassou.
Morto
de pena - pobre menina! - sentiu o coração confranger-se mas os olhos
persistiram fixos, nublados de cobiça até que a rapariga soltou a saia e prosseguiu:
-
Pai fez de mim, sua filha, amásia dele,
todo mundo sabe.
Enquanto Mãe foi viva, sem fala e sem acção,
me sujeitei, não ia deixar Mãe morrer sozinha. Mas depois que nós enterrou ela,
me toquei embora — Outra vez fitou o padrinho para afirmar:
—
Quem pensou que eu tava de acordo, se enganou. Eu tava era na casa do sem-jeito
com Mãe naquele estado.
Estava na casa do sem-jeito, verdade
pura, mas Natário apenas informou:
-
Não soube da morte de comadre Ana.
-
Faz uns vinte dias que faltou. Mandei um recado pra vosmicê na Atalaia. Não lhe
deram?
-
Estava de viagem, só agora tou voltando. E Irá?
-
Ficou com Pai.
-
E se ele fizer com Irá o mesmo que fez com tu?
-
Com Irá, padrinho? Mas é novinha por demais, não tem
ainda onze anos e nem botou sangue.
-
E o compadre é homem de arreparar nessas bobagens?
Na casa de Luíza Mocotó, no Rio do
Braço, tem uma de dez anos fazendo a vida. Diz-que foi o pai que arrombou. O
que mais tem por aqui é pé de cacau
e papa-cria.
Constatava sem comentar, era assim é se
acabou. No silêncio
pesado de intenções e pensamentos, o
Capitão empurrou com o pé as palmas que faziam vez de porta.
Estendeu a mão, tocou o vestido de bulgariana
colado na pele da afilhada. Bernarda não se moveu nem baixou os olhos.
Sua afilhada, meninazinha, vinha
correndo, nua e suja, pendurar- se em seu pescoço. Natário lhe oferecia uma
moeda de vintém mas ela recusava. Queria, isso sim, montar em seu cangote, segurar
as abas do chapéu de couro, brincar.
Cresceu adormecendo na rede, ressonando
contra o peito do capanga, rindo quando ele lhe fazia cócegas na sola dos pés.
O universo da criança se resumia no padrinho, tirante ele existia tão-somente
um deserto de desolação e indiferença.
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