sexta-feira, setembro 12, 2014

Aceita um mata-bicho?
TOCAIA GRANDE
(Jorge Amado)

Episódio Nº 50

















Impressionado com a algarviada incompreensível e com os modos do cigano, o carpinteiro, não sendo entendedor, não garantiu pelo ouro mas não conteve a admiração ante o lavor da peça:

 - Uma perfeição, trabalho de artista. É de ouro?

Ofendido com a pergunta, Josef apontou para Fadul:

 - Pergunte a ele, se quiser mesmo saber se é de ouro ou não. Ora essa! -  Enrolou a jóia no papel pardo e a devolveu ao bolso do colete: - Não está à venda.

Fadul desencostou-se do balcão, retirou da prateleira uma garrafa cheia pela metade, desarrolhou-a, mediu a talagada habitual de Lupiscínio e, antes de servir-se, ofereceu ao cigano ainda ressentido:

 - Aceita um mata-bicho?

Levantaram os copos, Josef degustava a cachaça devagar, não a bebeu de um trago como os outros dois. Fadul então perguntou, a voz neutra, despida de qualquer subentendido:

 -  Não é que eu queira comprar, não tenho a quem dar nem a quem vender. Só para saber, por curiosidade, me diga quanto está pedindo pelo relicário. O relicário, sem a corrente.

Josef esvaziou o copo lentamente, com um ruído da língua elogiou a aguardente. Voltou a retirar do bolso do colete o embrulho e a desdobrar o papel pardo deixando a jóia à mostra no balcão.

Por um instante apenas, pois num gesto inesperado a colocou
na mão do turco:

 - Guarde até amanhã, confira o ouro, as gramas e os quilates.

Amanhã, quando for escolher o burro, Vossência devolve ou, se quiser ficar com ele, Vossência mesmo marca o preço, quanto acha que ele vale. Largou a peça na mão de Fadul:

 -  Amanhã a gente acerta tudo, tudo junto.

Antes que o bodegueiro pudesse contestar ou reagir, Josef segurou o saco com as compras, recolheu e guardou as moedas separadas para o pagamento e atravessou a porta sem olhar para trás.

 - Nada disso! — Gritou Fadul ao recuperar a voz: - Venha cá! Leve seu troço.

Tarde demais: o cigano ia longe enquanto Lupiscínio, abestalhado, sem entender o que estava se passando, pedia explicações.

Fadul voltou a examinar a jóia demorada e detalhadamente.

Quem vende fiado a cigano é otário, minguado do juízo mas, por menos que pudesse valer, aquela peça valia muitas vezes o preço das compras feitas e não pagas: carne-seca, feijão, açúcar e uma garrafa de cachaça.

 Não corria o risco de calote, se alguém tinha o que perder era o cigano. Por via das dúvidas, na hora do acerto colocaria o revólver na cintura.

Coroca, que acabara de chegar, bateu palmas ao ver o relicário:

 - Coisa mais bonita! Dona Marcelina, mulher do coronel Ilídio, tinha um mas não chegava aos pés desse. - Dirigiu-se ao turco:

 - Comprou, seu Fadul? Para dar a quem? Está pensando em se casar?

5

Pedaço de ferro ressoando contra a borda do tacho, o cigano Maurício, profusa bigodeira, braços tatuados, lenço amarrado na cabeça, percorreu Tocaia Grande de ponta a ponta anunciando a presença dos exímios remendões de objectos de metal, de chaleiras e panelas.

Escusado pregão, oferta vã: nem uma só panela a consertar; os cacos de barro, as canecas de lata não requeriam cuidados.

Maria Gina percebeu quando, dirigindo-se para o acampamento, Maurício empalmou o sol e o recolheu no fundo do tacho.

Adensaram-se as sombras do crepúsculo, crepúsculo de medo e encantamento.

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