Aceita um mata-bicho? |
TOCAIA GRANDE
(Jorge Amado)
Episódio Nº 50
Impressionado com a algarviada incompreensível e com os modos do cigano, o carpinteiro, não
sendo entendedor, não garantiu pelo ouro mas não conteve a admiração ante o
lavor da peça:
-
Uma perfeição, trabalho de artista. É de ouro?
Ofendido com a pergunta, Josef apontou
para Fadul:
-
Pergunte a ele, se qui ser mesmo
saber se é de ouro ou não. Ora essa! - Enrolou a jóia no papel pardo e a devolveu ao
bolso do colete: - Não está à venda.
Fadul desencostou-se do balcão, retirou
da prateleira uma garrafa cheia pela metade,
desarrolhou-a, mediu a talagada habitual de Lupiscínio e, antes de servir-se,
ofereceu ao cigano ainda ressentido:
-
Aceita um mata-bicho?
Levantaram os copos, Josef degustava a
cachaça devagar, não a bebeu de um trago como os outros
dois. Fadul então perguntou, a voz neutra, despida de qualquer subentendido:
-
Não é que eu queira comprar, não tenho a
quem dar nem a quem vender. Só para saber, por
curiosidade, me diga quanto está pedindo pelo relicário. O relicário, sem a
corrente.
Josef esvaziou o copo lentamente, com um
ruído da língua elogiou a aguardente. Voltou a retirar do bolso do colete o
embrulho e a desdobrar o papel pardo deixando a jóia à mostra no balcão.
Por um instante apenas, pois num gesto
inesperado a colocou
na mão do turco:
-
Guarde até amanhã, confira o ouro, as gramas e os qui lates.
Amanhã, quando for escolher o burro,
Vossência devolve ou, se qui ser
ficar com ele, Vossência mesmo marca o preço, quanto acha que ele vale. Largou
a peça na mão de Fadul:
-
Amanhã a gente acerta tudo, tudo junto.
Antes que o bodegueiro pudesse contestar
ou reagir, Josef segurou o saco com as compras, recolheu e guardou as moedas separadas
para o pagamento e atravessou a porta sem olhar para trás.
-
Nada disso! — Gritou Fadul ao recuperar a voz: - Venha cá! Leve seu troço.
Tarde demais: o cigano ia longe enquanto
Lupiscínio, abestalhado, sem entender o que estava se passando, pedia
explicações.
Fadul voltou a examinar a jóia demorada
e detalhadamente.
Quem vende fiado a cigano é otário,
minguado do juízo mas, por menos que pudesse valer, aquela peça valia muitas
vezes o preço das compras feitas e não pagas: carne-seca, feijão, açúcar e uma garrafa
de cachaça.
Não corria o risco de calote, se alguém tinha
o que perder era o cigano. Por via das dúvidas, na hora do acerto colocaria o
revólver na cintura.
Coroca, que acabara de chegar, bateu
palmas ao ver o relicário:
-
Coisa mais bonita! Dona Marcelina, mulher do coronel Ilídio, tinha um mas não
chegava aos pés desse. - Dirigiu-se ao turco:
- Comprou, seu Fadul? Para dar a
quem? Está pensando em se casar?
5
Pedaço de ferro ressoando contra a borda
do tacho, o cigano Maurício, profusa bigodeira, braços
tatuados, lenço amarrado na cabeça, percorreu Tocaia Grande de ponta a ponta
anunciando a presença dos exímios remendões de objectos de metal, de chaleiras e
panelas.
Escusado pregão, oferta vã: nem uma só
panela a consertar; os cacos de barro, as canecas de lata
não requeriam cuidados.
Maria Gina percebeu quando, dirigindo-se
para o acampamento, Maurício empalmou o sol e o recolheu no fundo do tacho.
Adensaram-se as sombras do crepúsculo,
crepúsculo de medo e encantamento.
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