Fadul gostava de apreciar o trabalho de Castor |
TOCAIA GRANDE
(Jorge Amado)
Episódio Nº 122
Carradas de razão tinha Coroca, reflectiu o
carpinteiro: as ruas de frente são privativas das famílias, mesmo no cu do
mundo.
Quando Tição chegou e acendeu a forja
era cada um por si e
Deus por todos, como explicara o velho
Gerino a Bernarda na noite de assalto e de vexame. Para não se transformar num
vivente sombrio e triste, miserável, precisava modificar com urgência os
hábitos e o procedimento dos minguados habitantes: implantar o convívio onde
medrava a indiferença.
Se não decorrera tanto tempo, ao menos parecia.
3
Quem mais se alegrou com a presença de
Tição Abduim em Tocaia Grande foi Fadul Abdala. Contente
a ponto de destinar uma garrafa de cachaça para consumo grátis na tarde em que
o negro suspendeu a pata do burro Charuto em meio à gritaria do festivo
corrilho reunido diante da oficina.
Tinham-se conhecido na fazenda do
coronel Robustiano: o negro ferrando animais, o turco expondo as mercadorias da
mala de mascate.
Certa ocasião, estando os dois de
passagem por Taquaras, juntos se encontraram em animado bailarico, prazenteiro dançarás
na pensão da índia Alice: na hora de maior influência, apareceu uma súcia de
desordeiros e o pacato bleforé acabou em água suja com pancadaria e tiros.
Escaparam ilesos e o negro, além de ter
esborrachado a cara de um dos valentões, tomara-lhe o revólver - quem não tem
competência para manejar um pau-defumaça não deve sacá-lo da cintura, pode facilmente
perder a arma e a chibança.
Fadul via em Tição uma garantia a mais
contra eventuais e sempre temidas ameaças à tranqui lidade
do lugar. É bem verdade que Coroca dava perfeita conta do recado quando, na
ausência do proprietário, cuidava do armazém, e que nenhum jagunço voltara a
sobressaltar os habitantes de Tocaia Grande: antes de se decidir a fazê-lo o
façanhudo devia pensar ao menos duas vezes.
Os perigos haviam-se reduzido. De
qualquer maneira, porém, a oficina aberta com o negro à frente significava mais
uma razão de peso a desanimar ladrões e malfeitores.
O
comerciante e o ferreiro começaram por estabelecer um pacto: não se afastariam
os dois ao mesmo tempo de Tocaia Grande; quando um deles necessitasse viajar, o
outro se manteria a postos, pronto para intervir caso sucedesse novidade.
Entre o movimento noturno e o matinal
ditados pela chegada e partida dos comboios, a insipidez se
impunha, insuportável: os dois proscritos enchiam as horas mortas conversando
fiado, permutando memórias, recordando peripécias e lambanças, narrando contos
da carochinha. Ou apenas faziam-se companhia em silêncio: o árabe no apuro do
narguilé, o negro rendilhando peças de ferro ou de latão.
Fadul gostava de apreciar o trabalho de
Castor, ao mesmo tempo bruto e delicado, de vê-lo transformar inútil fragmento
de ferro em prenda para mulher, anel ou broche, fazer de velho pedaço de lata
útil vasilhame para o pote e o braseiro.
Em troca, não havia ouvinte mais atento
do que Tição às narrativas do turco, episódios da Bíblia, fantasias do Oriente,
com profetas e tetrarcas, magos prodigiosos e apreciáveis odaliscas de umbigo à
mostra.
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