A força escondida de um sem-abrigo |
Este é o mundo
detestável
detestável
em que vivemos
(Texto de Nichole Gracely, bacharelato em Jornalismo e mestrado
Sou um sem-abrigo. Prefiro os meus piores dias nesta
condição aos melhores da época em que trabalhava na Amazon - empresa multinacional de comércio electrónico dos Estados Unidos com sede em Seattle, estado de Washington - . Foi uma das primeiras companhias com alguma relevância a
vender produtos na Internet.).
Segundo
os indicadores da Amazon, eu era uma das preparadoras mais produtivas, uma máqui na e o meu ritmo ia acelerando ao longo de cada
turno.
O que
eles não sabiam era que o meu ritmo se mantinha elevado porque se abrandasse,
nem que fosse por um segundo, o tédio e a exaustão apoderar-se-iam de mim.
Na
época alta, treinava trabalhadores em part-time. Quando
esses períodos terminavam voltava a ser uma mera preparadora de encomendas, a
trabalhar no armazém, sozinha, durante 10 horas, com todos os meus movimentos a
serem permanentemente acompanhados pela administração num monitor.
Um
magnífico desempenho não era sinónimo de estabilidade profissional.
Tratavam-nos como mendigos, porque precisávamos de empregos. Nunca me senti tão
sozinha como quando trabalhava na Amazon.
A
empresa podia exigir-nos horas extras e nós éramos obrigados a aceitar qualquer
mudança de horário. Se não houvesse trabalho mandavam-nos para casa mais cedo,
sem remuneração.
Comecei
a não conseguir pagar as contas.
A
dada altura, perdi o medo. Já tinha estado no inferno. Resolvi insurgir-me
contra a Amazon. Fechei-me num apartamento a promover debates em fóruns, a
escrever artigos e a falar na imprensa.
Isto
foi em 2012 quando se começou a escrutinar as práticas laborais e negociais da
Amazon. Deixei de trabalhar no armazém e fiquei sem fonte de rendimentos.
Comecei a não conseguir pagar as contas.
Usei
a cartão de crédito para pagar a renda e comprar comida – faltavam 6 meses para
poder usufruir do subsídio de desemprego.
Nesses
meses, recebi 200 dólares (161 euros por semana e, após perder o direito ao
subsídio, não voltei a ter rendimento fixo.
Vendi
tudo o que tinha no apartamento e deixei a Pensilvânia. Não sabia como pedir
ajuda, nem sabia que tinha direito a cupões de alimentação.
Nos
meus tempos de sem-abrigo em Seatle intensifiquei o meu protesto contra a
Amazon. Fui para a rua pedir esmola com um letreiro que dizia assim.
“Fui
preparadora de encomendas na Amazon.com. Sou formada e já publiquei. Agora sou
sem-abrigo, escrevo e protesto. Qualquer ajuda é bem-vinda”.
Ganhei
mais dinheiro por palavra com os meus cartazes do que alguma vez deverei ganhar
a escrever e recebo mais à hora do que alguma vez deverei receber pelo meu
trabalho.
Tenho
a certeza que não correspondo ao perfil típico
do
sem-abrigo americano. Tenho formação superior. Publiquei numa revista
científica e num website sobre justiça social.
Completei
o meu mestrado em
Estudos Americanos e decidi não tirar um doutoramento por não
se tratar de uma opção de carreira viável.
A
perspectiva de trabalhar auferindo menos do que o salário mínimo como
mestranda e, caso tivesse muita sorte, tornar-me professora assistente, nunca
me fascinou.
Percebi que estava iludida ao achar que uma aluna de Humanidades
seria tolerada e devidamente remunerada. O contexto universitário actual
assemelha-se cada vez mais ao mundo empresarial.
A minha situação não se deteriorou quando deixei de
ter uma fonte de rendimento fixo e deixei de ser capaz de pagar contas.
Um instinto de sobrevivência, que desconhecia, veio ao
de cima. Aprendi a viver sem dinheiro ou casa. Recuso-me a viver entre paredes
opressivas. Parei de me preocupar com estatísticas assustadoras.
Acampei e reivindiquei o direito à construção de “bairros
de lata”. Dormi sobre cartão e cimento, durante o Março mais chuvoso de que há
registo em Seatle.
Acampei em terrenos do Ministério dos Transportes,
perto de estradas interestaduais. Percorri qui lómetros
a pé de saco - cama, lona e uma muda de
roupa, sem saber onde ia pernoitar.
Candidatei-me a todo o tipo de empregos. Excluí o meu
mestrado do currículo para não parecer sobre - qualificada. Tentei de tudo um
pouco. Talvez seja por ter protestado contra a Amazon. Talvez seja porque o meu
crédito esteja arruinado. Talvez seja por ter utilizado instalações de serviços
de apoio aos sem-abrigo como morada.
Ou talvez seja por não haver muito emprego disponível.
Quem se queixa que os americanos de hoje em dia são mais fracos deve parar e
olhar para os sem-abrigo. É necessário ser-se extremamente forte, saudável e
feliz.
Uma sem-abrigo é mais respeitada do que um funcionário
da Amazon.
Nota – A mesma sociedade que se organizou de forma despótica
e desumana é a mesma que de uma forma anónima compreende e ajuda uma jovem
sem-abrigo que lhe estende a mão no passeio da rua.
Quando olhamos para a humanidade, de um ponto de vista
longínquo, percebemos esta réstea de esperança que se esconde no coração dos homens,
os mesmos que vigiavam e exploravam a jovem quando trabalhava no armazém
preparando encomendas.
Comportamentos antagónicos revelam-nos a natureza
complexa da nossa espécie que hoje, ao sair de casa, cumprimenta amigavelmente
o vizinho e amanhã o mata sem dó nem piedade, como aconteceu no desmembrar da
antiga Jugoslávia.
É isto que me faz dizer que estamos condenados a viver,
dramaticamente, sobre o fio da navalha num equi líbrio
instável cada vez mais perigoso e, se qui sermos
saber como foi possível superar situações de aparente bloqueio que sofremos ao
longo da nossa evolução, atentemos nos sem-abrigo: vem um vulcão, um terramoto,
um tsunami e leva-nos tudo, apenas nos deixa forças desconhecidas que estavam
dentro de nós e nos revelam o sobrevivente que nós somos.
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