terça-feira, janeiro 06, 2015

A força escondida de um sem-abrigo
Este é o mundo

 detestável

 em que vivemos


(Texto de Nichole Gracely, bacharelato em Jornalismo e mestrado em Estudos Americanos)










Sou um sem-abrigo. Prefiro os meus piores dias nesta condição aos melhores da época em que trabalhava na Amazon - empresa multinacional de comércio electrónico dos Estados Unidos com sede em Seattle, estado de Washington - . Foi uma das primeiras companhias com alguma relevância a vender produtos na Internet.).

 Segundo os indicadores da Amazon, eu era uma das preparadoras mais produtivas, uma máquina e o meu ritmo ia acelerando ao longo de cada turno.

O que eles não sabiam era que o meu ritmo se mantinha elevado porque se abrandasse, nem que fosse por um segundo, o tédio e a exaustão apoderar-se-iam de mim.

Na época alta, treinava trabalhadores em part-time. Quando esses períodos terminavam voltava a ser uma mera preparadora de encomendas, a trabalhar no armazém, sozinha, durante 10 horas, com todos os meus movimentos a serem permanentemente acompanhados pela administração num monitor.

Um magnífico desempenho não era sinónimo de estabilidade profissional. Tratavam-nos como mendigos, porque precisávamos de empregos. Nunca me senti tão sozinha como quando trabalhava na Amazon.

A empresa podia exigir-nos horas extras e nós éramos obrigados a aceitar qualquer mudança de horário. Se não houvesse trabalho mandavam-nos para casa mais cedo, sem remuneração.

Comecei a não conseguir pagar as contas.

A dada altura, perdi o medo. Já tinha estado no inferno. Resolvi insurgir-me contra a Amazon. Fechei-me num apartamento a promover debates em fóruns, a escrever artigos e a falar na imprensa.

Isto foi em 2012 quando se começou a escrutinar as práticas laborais e negociais da Amazon. Deixei de trabalhar no armazém e fiquei sem fonte de rendimentos. Comecei a não conseguir pagar as contas.

Usei a cartão de crédito para pagar a renda e comprar comida – faltavam 6 meses para poder usufruir do subsídio de desemprego.

Nesses meses, recebi 200 dólares (161 euros por semana e, após perder o direito ao subsídio, não voltei a ter rendimento fixo.

Vendi tudo o que tinha no apartamento e deixei a Pensilvânia. Não sabia como pedir ajuda, nem sabia que tinha direito a cupões de alimentação.

Nos meus tempos de sem-abrigo em Seatle intensifiquei o meu protesto contra a Amazon. Fui para a rua pedir esmola com um letreiro que dizia assim.

“Fui preparadora de encomendas na Amazon.com. Sou formada e já publiquei. Agora sou sem-abrigo, escrevo e protesto. Qualquer ajuda é bem-vinda”.

Ganhei mais dinheiro por palavra com os meus cartazes do que alguma vez deverei ganhar a escrever e recebo mais à hora do que alguma vez deverei receber pelo meu trabalho.

Tenho a certeza que não correspondo ao perfil típico
do sem-abrigo americano. Tenho formação superior. Publiquei numa revista científica e num website sobre justiça social.

Completei o meu mestrado em Estudos Americanos e decidi não tirar um doutoramento por não se tratar de uma opção de carreira viável.

A perspectiva de trabalhar auferindo menos do que o salário mínimo como mestranda e, caso tivesse muita sorte, tornar-me professora assistente, nunca me fascinou.

Percebi que estava iludida ao achar que uma aluna de Humanidades seria tolerada e devidamente remunerada. O contexto universitário actual assemelha-se cada vez mais ao mundo empresarial.

A minha situação não se deteriorou quando deixei de ter uma fonte de rendimento fixo e deixei de ser capaz de pagar contas.

Um instinto de sobrevivência, que desconhecia, veio ao de cima. Aprendi a viver sem dinheiro ou casa. Recuso-me a viver entre paredes opressivas. Parei de me preocupar com estatísticas assustadoras.

Acampei e reivindiquei o direito à construção de “bairros de lata”. Dormi sobre cartão e cimento, durante o Março mais chuvoso de que há registo em Seatle.

Acampei em terrenos do Ministério dos Transportes, perto de estradas interestaduais. Percorri quilómetros a pé de saco -  cama, lona e uma muda de roupa, sem saber onde ia pernoitar.

Candidatei-me a todo o tipo de empregos. Excluí o meu mestrado do currículo para não parecer sobre - qualificada. Tentei de tudo um pouco. Talvez seja por ter protestado contra a Amazon. Talvez seja porque o meu crédito esteja arruinado. Talvez seja por ter utilizado instalações de serviços de apoio aos sem-abrigo como morada.

Ou talvez seja por não haver muito emprego disponível. Quem se queixa que os americanos de hoje em dia são mais fracos deve parar e olhar para os sem-abrigo. É necessário ser-se extremamente forte, saudável e feliz.

Uma sem-abrigo é mais respeitada do que um funcionário da Amazon.


Nota A mesma sociedade que se organizou de forma despótica e desumana é a mesma que de uma forma anónima compreende e ajuda uma jovem sem-abrigo que lhe estende a mão no passeio da rua.

Quando olhamos para a humanidade, de um ponto de vista longínquo, percebemos esta réstea de esperança que se esconde no coração dos homens, os mesmos que vigiavam e exploravam a jovem quando trabalhava no armazém preparando encomendas.

Comportamentos antagónicos revelam-nos a natureza complexa da nossa espécie que hoje, ao sair de casa, cumprimenta amigavelmente o vizinho e amanhã o mata sem dó nem piedade, como aconteceu no desmembrar da antiga Jugoslávia.


É isto que me faz dizer que estamos condenados a viver, dramaticamente, sobre o fio da navalha num equilíbrio instável cada vez mais perigoso e, se quisermos saber como foi possível superar situações de aparente bloqueio que sofremos ao longo da nossa evolução, atentemos nos sem-abrigo: vem um vulcão, um terramoto, um tsunami e leva-nos tudo, apenas nos deixa forças desconhecidas que estavam dentro de nós e nos revelam o sobrevivente que nós somos.

Site Meter