quarta-feira, maio 06, 2015

O sentimento do outro...
A GUERRA COLONIAL


(O Meu Testemunho)
























Quando, há uns anos atrás, acabei de  ver o primeiro episódio da saga de Joaquim Furtado sobre a Guerra Colonial senti, pela primeira vez, que fazia parte da história deste país.

Os anos cavam uma distância que dá profundidade às lembranças e 52 anos depois as imagens desprendem-se dos seus protagonistas, ganham vida própria e entram para uma espécie de arquivo histórico mesmo de quem as viveu.

Bastava, de resto, reparar que os jovens que protagonizaram aquelas cenas já pouco tinham a ver com os senhores de idade que tendo tido a sorte de sobreviver, enriqueceram agora, com o seu testemunho, sóbrio e distanciado, as imagens que apenas davam uma pequena amostra da barbárie dos massacres e da violência de uma guerra traiçoeira.

Cheguei ao Úcua a 11 de Novembro de 1962 integrado no Batalhão de Caçadores 381, meses depois do massacre pelos guerrilheiros da UPA dos civis que ali viviam e trabalhavam e da vingança dos brancos que posteriormente fuzilaram os negros que drogados avançavam em direcção às balas das metralhadoras montadas sobre os jipes gritando, meio enlouquecidos, que “as balas dos brancos eram “maza” (agua) já acontecida à data em que cheguei.

Uma loucura, uma autêntica loucura a que muitos não resistiram e acabaram por engrossar as camas do Hospital Psiquiátrico de Luanda e hoje, alguns deles, já quase uma vida passada, continuam a sofrer os seus efeitos.

A esta distância tudo é estranho e esquisito e o que mais me ocorre dizer é, mais uma vez, o que se diz no fim de todas as guerras: lamentável, triste, inútil...

Meses antes do massacre dos colonos brancos no Norte de Angola, a 15 de Março de 1961, tinha estado eu de visita a Angola integrado numa viagem de fim de curso do ICSPU chefiada pelo Prof. Hermano Saraiva, já falecido.

Na região dos Dembos fomos recebidos pelos fazendeiros com a hospitalidade própria das gentes do Norte de Portugal que, na ignorância do que lhes iria acontecer pouco tempo mais tarde, ouviram, encantados, os discursos inflamados de patriotismo do Prof. Saraiva.

O mesmo Sr. Professor que não teve coragem de prosseguir até ao fim a visita à Baixa do Cassange, no distrito de Malange, depois de nos termos cruzado com dois homens que ali eram obrigados a trabalhar para a Cotonang (Consórcio de capitais portugueses, ingleses e alemães) na cultura do algodão e que transportavam para o Hospital, a quilómetros de distancia, numa padiola, uma mulher e uma criança todos eles num estado sub-humano que nos levou a inverter a marcha e a levá-los nos jeeps  ao destino.

O clima muito quente e de elevada humidade favorecia a cultura do algodão mas a sua exploração só era possível pelo recurso ao trabalho dos indígenas que para ali eram recrutados à força e mantidos num regime muito perto da escravatura pois não só eram obrigados a cultivar o algodão como a vendê-lo à Cotonang ao preço que esta fixava e que era baixíssimo.

Poucos meses depois daquele encontro, a 4 de Janeiro de 1961, registou-se ali uma revolta que se saldou pela morte de milhares (?) de trabalhadores que reivindicavam melhores condições de trabalho, isenção do pagamento de impostos e a abolição do trabalho forçado.

Anos mais tarde, talvez 1977/78, numa visita a uma grande Fábrica de Fiação no nosso país, em Tomar, na qualidade de funcionário da Direcção Geral da Promoção do Emprego do Ministério de Trabalho, percebi que aquele algodão, produzido naquelas condições desumanas e adquirido a preços fora da concorrência, tinha ajudado a manter uma empresa que  trabalhava com teares de princípios do Século, equipamento mais que ultrapassado, tão ruidoso que só com tampões nos ouvidos era possível ali estar.


Em última análise, o sacrifício da vida daqueles milhares de trabalhadores na Baixa do Cassange, em Angola, tinha sido inútil, de resultados contraproducentes que poderiam ser extensivos a toda a exploração colonial. Não valeram de nada... Manter empresas à custa de trabalho escravo em Angola e outro, em Portugal, sem direitos defendidos por Sindicatos proibidos pela Polícia do regime, apenas contribuiu para enriquecer empresários incompetentes.


... Bem se poderia dizer que, mais uma vez, o crime não compensou.

A política irresponsável e criminosa de um ditador, uma Administração cúmplice, cobarde e servil e uns milhares de colonos, voluntaristas, gente simples, de trabalho mas desinformada, manipulada e incapazes de compreender que o quadro para onde as suas vidas se tinham encaminhado estava transformado numa armadilha fatal.

E tudo isto foi possível de acontecer por duas razões: uma, de raiz, comezinha, evidente e que não foi percebida por quase um país inteiro: Aquela não era a nossa terra e aquela gente não era a nossa!

Viviam num Continente diferente, falavam línguas diferentes, a sua organização política e social era diferente como o eram, igualmente, a sua história e as suas crenças. Nada tinham em comum connosco e não consta que tenham solicitado a nossa presença para os governar.

A segunda razão, é que toda a gente ignorou os avisos, os sinais, as informações sobre o que iria acontecer, especialmente as mais altas autoridades administrativas de Angola que nada fizeram perante os ouvidos moucos do governo de Lisboa.

Talvez Salazar estivesse à espera do que inevitavelmente iria acontecer para poder mostrar depois na Assembleia-Geral da Nações Unidas, as fotografias das pessoas trucidadas e assim justificar a necessidade da presença dos portugueses em África, fotografias essas que nos foram mostradas um pouco às escondidas, enquanto cadetes do Curso de Oficiais Milicianos para nos despertar o instinto de vingança quando, dentro de meses fossemos combater.


A legitimidade da guerra não era levantada pela generalidade dos soldados que me acompanharam, na sua maioria pouco menos que analfabetos, mas os seus desabafos e queixumes à boca calada diziam muito, em termos reprovadores, do que lhes ia na alma sobre aquela guerra e que era muito diferente, pela certa, do que teriam dito se estivessem a defender a sua terra e a sua gente.

Satisfaz-me a ideia de que tudo fiz para os proteger mas, honestamente, tenho que admitir que o acaso nos foi muito favorável e sem a sua ajuda não teria sido possível regressarmos todos. Como se costuma dizer: “a sorte na guerra é escapar.”

Acima de tudo o país foi vítima de um grande logro ao qual se juntaram, ao longo dos anos a seguir ao início da guerra, um cortejo enorme de mentiras produzidas por generais e políticos que os deviam ter feito corar de vergonha.

Mas não havia outra saída, as mentiras alimentam-se umas às outras e o desfecho só poderia ter sido o que foi: o regresso em massa de mais de 500.000 portugueses desorientados, confusos, alguns deles, os mais velhos, incapazes de resistir ao seu infortúnio mas, na generalidade dos casos, a integração foi possível e aconteceu de uma forma mais fácil e rápida do que se poderia pensar numa demonstração de vitalidade que talvez ajude a explicar muita coisa neste país de 8 séculos de existência.


Se pensarmos no trauma que foi o regresso dos 800.000 franceses a França com a independência da Argélia em 1962, bem podemos dizer que os portugueses produziram um milagre que já tinha acontecido com a Revolução dos Cravos, coisa nunca vista no mundo em nenhum golpe militar.

Falamos muito dos nossos defeitos e esquecemos esta característica que é nossa, faz parte dos portugueses: somos tolerantes, pacíficos, a convivência que ao longo dos séculos desenvolvemos com outros povos que nos contactavam nos muitos portos ao longo da nossa costa deu-nos a conhecer a diferença e desenvolveu-nos o sentimento do “outro”.

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