(Domingos Amaral)
Episódio Nº 4
Dª Tereza atrapalhou-se: a
deficiência física de Afonso Henriques, que viera ao mundo com as pernas tortas
e definhadas, embaraçava-a.
Junto à cama, um incomodado
Egas Moniz exclamou:
- Está muito melhor, até já corre.
Dª Urraca limitou-se a
murmurar, como se dele tivesse imensa pena:
- Coitadito.
Depois saíu do quarto,
enquanto Dª Tereza mirava o filho com um ar ressentido, nem retribuindo o
sorriso que o menino lhe abriu, antes de a ver parir também.
Egas Moniz, em voz baixa
comentou desolado:
- Pobre príncipe. Nem pai, nem mãe...
Paio Soares, com os caracóis
morenos despenteados e ainda molhados da chuva, abanou a cabeça, pesaroso. Como
se carregasse na alma todas as desilusões do mundo.
Desde esse dia, dizia-se,
passou a ter pesadelos, temendo que Dª Urraca o mandasse prender e torturar.
Vinte anos mais tarde, meu
pai, Egas Moniz, que Deus o guarde, sempre que me via desgrenhado exclamava:
- Lourenço Viegas, meu filho, pareces o Paio
Soares quando chegou a Astroga, no dia em que morreu o conde!
Por vezes, são estes
detalhes, que as pessoas melhor recordam, e assim era com meu pai, embora
naquela noite em Astorga ele soubesse perfeitamente que o grotesco desalinho
dos caracóis de Paio Soares não se devia a desleixo, pois até era um homem
vaidoso, mas sim à chuva e, sobretudo, à turbulência das suas emoções.
O alferes, leal comandante
das tropas do conde, era incapaz de aceitar que aquele homem de quarenta e seis
anos, e ainda na força da vida, fosse abatido de uma forma tão impiedosa.
Mas desde a morte do
Imperador Afonso VI, as lutas na Hispânia eram permanentes, instáveis e
confusas. O conde Henrique, mesmo sem ter o apoio de sua esposa, Dona Tereza,
alimentava desejos de grandeza que chocavam frontalmente com os da cunhada.
Teria sido eliminado por
causa disso? Nada era impossível naquela barafunda trágica que atingia a
Península.
Dª Urraca era má e
traiçoeira, imprevisível e cobarde, uma mulher que só servia para baralhar os
adultos e meter medo às crianças.
Mandar envenenar o conde não
surpreenderia ninguém, já tentara o mesmo com o próprio marido, Afonso I de
Aragão.
Sempre que me mandava
pentear, meu pai relembrava também que fora ali, naquele quarto triste e escuro
de Astorga, que o reino de Portugal começara a nascer.
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