sexta-feira, julho 31, 2015

Assim

Nasceu 

Portugal

(Domingos Amaral)

Episódio Nº 30












Mem desatou a nadar, mas agora fazia-o contra a corrente e por isso demorava mais. Ainda pensou em gritar para chamar a atenção do pai, mas temia que o maldito de branco o ouvisse e viesse direito a ele, por isso só nadou.

Quando chegou à margem, encontrava-se mais longe do pai, vinte metros acima, e estava cansado do esforço. Levantou-se e tentou correr, vendo que o matador de branco acabara de degolar outro desgraçado, numa elevação apenas a cinco metros do arbusto onde o pai estava.

O coração de Mem começou a bater desordenadamente, o pai ia ser atacado! Decidiu arriscar.

Levou dois dedos à boca, imitando o assobio usual do seu progenitor, quando chamava pelos jumentos. De seguida escondeu-se atrás de um arbusto, pois o facínora ouvira-o e virara a cara na sua direcção, limpando a espada de sangue.

Quando, instantes mais tarde, Mem espreitou entre os ramos, o seu corpo paralisou, atingido pelo medo mais profundo que alguma vez sentira.

O pai saía de trás de uma pequena oliveira, a sorrir para Mem, pois ouvira o assobio, e ia dizer qualquer coisa quando o carniceiro saltou para junto dela e elevou o alfange, puxando o braço atrás.

Por mais anos que Mem vivesse, nunca iria esquecer aquele momento. Os joelhos falharam-lhe, viu a cabeça do pai voar, cortada pela violência do golpe dado pelo monstro.

Um jacto de sangue espirrou e o corpo mole do pai, já sem vida, tombou para o lado, enquanto Mem sentia uma dor violenta no peito, uma dor que ainda não o abandonara horas depois.

O medo de morrer impedira-o de gritar. Ficara em silêncio, cerrando os dentes, pois, se fizesse algum ruído, o carrasco vestido de branco, a poucos metros, teria ouvido.

Viu-o cirandar de um lado para o outro, procurando mais doentes, e depois dar meia volta e desaparecer. Ainda ouviu berros mais longe até que tudo caiu no mais sinistro silêncio.

Não se ouvia um gemido, um lamento de um mo, moribundo. Aquele fantasma sanguinário matara todos os doentes, mais de trinta, em pouco tempo, como se fosse uma praga letal que ceifava vidas, idênticas às das históricas bíblicas que o pai lhe contava.

Durante horas, Mem permaneceu totalmente paralisado de choque e de pavor, e foi só quando o sol já ia bem alto que se aproximou do cadáver do pai.

Contraindo-se em espasmos, viu a cabeça afastada do corpo, o sangue escuro espalhado na terra e não conseguiu avançar.

Desatou a chorar. A única pessoa de quem gostava estava morta.

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