Nasceu
Portugal
(Domingos Amaral)
Episódio Nº 30
Mem desatou a nadar, mas
agora fazia-o contra a corrente e por isso demorava mais. Ainda pensou em
gritar para chamar a atenção do pai, mas temia que o maldito de branco o
ouvisse e viesse direito a ele, por isso só nadou.
Quando chegou à margem,
encontrava-se mais longe do pai, vinte metros acima, e estava cansado do
esforço. Levantou-se e tentou correr, vendo que o matador de branco acabara de
degolar outro desgraçado, numa elevação apenas a cinco metros do arbusto onde o
pai estava.
O coração de Mem começou a
bater desordenadamente, o pai ia ser atacado! Decidiu arriscar.
Levou dois dedos à boca,
imitando o assobio usual do seu progenitor, quando chamava pelos jumentos. De
seguida escondeu-se atrás de um arbusto, pois o facínora ouvira-o e virara a
cara na sua direcção, limpando a espada de sangue.
Quando, instantes mais
tarde, Mem espreitou entre os ramos, o seu corpo paralisou, atingido pelo medo
mais profundo que alguma vez sentira.
O pai saía de trás de uma
pequena oliveira, a sorrir para Mem, pois ouvira o assobio, e ia dizer qualquer
coisa quando o carniceiro saltou para junto dela e elevou o alfange, puxando o
braço atrás.
Por mais anos que Mem
vivesse, nunca iria esquecer aquele momento. Os joelhos falharam-lhe, viu a
cabeça do pai voar, cortada pela violência do golpe dado pelo monstro.
Um jacto de sangue espirrou
e o corpo mole do pai, já sem vida, tombou para o lado, enquanto Mem sentia uma
dor violenta no peito, uma dor que ainda não o abandonara horas depois.
O medo de morrer impedira-o
de gritar. Ficara em silêncio, cerrando os dentes, pois, se fizesse algum
ruído, o carrasco vestido de branco, a poucos metros, teria ouvido.
Viu-o cirandar de um lado
para o outro, procurando mais doentes, e depois dar meia volta e desaparecer.
Ainda ouviu berros mais longe até que tudo caiu no mais sinistro silêncio.
Não se ouvia um gemido, um
lamento de um mo, moribundo. Aquele fantasma sanguinário matara todos os
doentes, mais de trinta, em pouco tempo, como se fosse uma praga letal que
ceifava vidas, idênticas às das históricas bíblicas que o pai lhe contava.
Durante horas, Mem
permaneceu totalmente paralisado de choque e de pavor, e foi só quando o sol já
ia bem alto que se aproximou do cadáver do pai.
Contraindo-se em espasmos,
viu a cabeça afastada do corpo, o sangue escuro espalhado na terra e não
conseguiu avançar.
Desatou a chorar. A única
pessoa de quem gostava estava morta.
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