sábado, setembro 05, 2015

Assim Nasceu Portugal
(Domingos Amaral)

Episódio Nº 51




















Sei do que falo, embora eu até fosse o que menos olhasse para as mouras, sobretudo a partir daquela Páscoa em Viseu.

De qualquer forma, todos sabíamos que Fátima era virgem e que nunca se amigara com um cristão, pois destilava ódio aos seguidores de Jesus.

Já a sua irmã Zaida, apesar de também intocada, era meiga e carinhosa, e dizia sempre que herdara o espírito sensível e caloroso dos haréns de Sevilha, do tempo do seu bisavô e rei Al-Mutamid, onde as mulheres se beijavam umas às outras, na aprendizagem constante dos prazeres mais profundos, que depois praticavam com os homens.

Ela e a mãe dormiam na mesma cama, mas Fátima nunca participava nessas distracções, parecia fechada à festa dos sentidos.
Em comum, as irmãs só tinham o negro dos olhos e dos longos cabelos.

Enquanto Fátima apresentava um perfil agreste, cheio de arestas no rosto, Zaida era redonda de cara e de corpo, parecida com Zulmira, que topava os olhares gulosos que cristãos e moçárabes deitavam à filha mais nova, bem como os piropos com que homens e mulheres a brindavam!

Em família, como anos mais tarde me confessou, Zaida pagava um preço pela sua popularidade. Com ciúmes, Fátima chamava constantemente de gorda ou balofa, acusando-a de comer de mais e não fazer exercícios.

Todavia, ela não parecia importar-se. Não nascera para ginástica nem para a guerra. “Não sou nenhuma amazona, sou assim e tu és como és, nenhuma está mal ou bem”, proclamara um dia, e a partir dessa data a irmã nunca mais a chamara para treinar com espadas ou punhais.

A minha Maria Gomes diria certa vez que Zaida era um pote de mel, enquanto Fátima era uma vespa impetuosa. Com um carácter fluido e volúvel, Zaida nunca se enfurecia contra os outros ou contra o destino e parecia sempre contemplativa e em paz com o mundo.

Contudo, faltava-lhe a energia primária e bruta da irmã, e talvez por isso fosse dada a doenças. Por isso ou porque lia de mais, apanhando pouco sol e muito pó.

O seu maior prazer era correr para as bibliotecas da Sé de Coimbra ou do Mosteiro de Guimarães, onde passava os dias a devorar páginas, a ponto de preocupar a mãe, a quem ela parecia muitas vezes aluada, a viver num eterno mundo de fantasia e com demasiada curiosidade pelo velho Testamento.

Nove anos depois daquela manhã em Coimbra, em que perdera as esperanças de que o marido Taxfin, as salvasse do cativeiro, Zulmira mantinha como imperativo moral da sua existência a fidelidade ao Corão, o seu fascínio pela Génesis levava a mãe a temer que ela cedesse a essa interdita tentação.


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