(Domingos Amaral)
Episódio Nº 51
Sei do que falo, embora eu até fosse o que menos olhasse para as mouras, sobretudo a partir daquela Páscoa em Viseu.
De qualquer forma, todos
sabíamos que Fátima era virgem e que nunca se amigara com um cristão, pois
destilava ódio aos seguidores de Jesus.
Já a sua irmã Zaida, apesar
de também intocada, era meiga e carinhosa, e dizia sempre que herdara o espírito
sensível e caloroso dos haréns de Sevilha, do tempo do seu bisavô e rei
Al-Mutamid, onde as mulheres se beijavam umas às outras, na aprendizagem constante
dos prazeres mais profundos, que depois praticavam com os homens.
Ela e a mãe dormiam na mesma
cama, mas Fátima nunca participava nessas distracções, parecia fechada à festa
dos sentidos.
Em comum, as irmãs só tinham
o negro dos olhos e dos longos cabelos.
Enquanto Fátima apresentava um
perfil agreste, cheio de arestas no rosto, Zaida era redonda de cara e de
corpo, parecida com Zulmira, que topava os olhares gulosos que cristãos e moçárabes
deitavam à filha mais nova, bem como os piropos com que homens e mulheres a
brindavam!
Em família, como anos mais
tarde me confessou, Zaida pagava um preço pela sua popularidade. Com ciúmes, Fátima
chamava constantemente de gorda ou balofa, acusando-a de comer de mais e não
fazer exercícios.
Todavia, ela não parecia
importar-se. Não nascera para ginástica nem para a guerra. “Não sou nenhuma
amazona, sou assim e tu és como és, nenhuma está mal ou bem”, proclamara um
dia, e a partir dessa data a irmã nunca mais a chamara para treinar com espadas
ou punhais.
A minha Maria Gomes diria
certa vez que Zaida era um pote de mel, enquanto Fátima era uma vespa
impetuosa. Com um carácter fluido e volúvel, Zaida nunca se enfurecia contra os
outros ou contra o destino e parecia sempre contemplativa e em paz com o mundo.
Contudo, faltava-lhe a
energia primária e bruta da irmã, e talvez por isso fosse dada a doenças. Por
isso ou porque lia de mais, apanhando pouco sol e muito pó.
O seu maior prazer era
correr para as bibliotecas da Sé de Coimbra ou do Mosteiro de Guimarães, onde
passava os dias a devorar páginas, a ponto de preocupar a mãe, a quem ela
parecia muitas vezes aluada, a viver num eterno mundo de fantasia e com
demasiada curiosidade pelo velho Testamento.
Nove anos depois daquela
manhã em Coimbra, em que perdera as esperanças de que o marido Taxfin, as
salvasse do cativeiro, Zulmira mantinha como imperativo moral da sua existência
a fidelidade ao Corão, o seu fascínio pela Génesis levava a mãe a temer que ela
cedesse a essa interdita tentação.
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