(Domingos Amaral)
Episódio Nº 95
Em esforço rodou sobre si próprio
no chão, tentando perceber quem lhe falava. A cerca de cinco metros, sentada
num penedo, estava uma mulher totalmente vestida de negro, com um capuz sobre a
cabeça, escondendo a cara.
Ela apontou para um local à
sua esquerda e Mem viu os dois jumentos e a carroça e ouviu outra vez a voz:
- Tive de vos adormecer, não
gosto de surpresas. Mas depois reconheci-vos.
O almocreve sentiu de novo
um receio agudo a percorrer-lhe o corpo.
- Quem sois vós? - perguntou.
- De onde me conheceis?
Então, a mulher falou
pausadamente:
- Fui eu que cremei o vosso pai.
Mem recordou-se: o pai a ser
degolado pelo demónio de branco, o céu a ficar escuro e cheio de estrelas, uma
mulher de negro colocando a cabeça junto do corpo do pai e depois dizendo-lhe
que dirigisse a Coimbra, onde poderia recomeçar a sua vida, o que Mem fizera
com o coração rasgado de dor.
Sentiu uma comoção interior.
- Nunca vos agradeci por me
teres ajudado. Obrigado.
A mulher nada disse e por
isso ele perguntou:
- Como vos chamais?
Ela levantou-se pela
primeira vez e reparou que não era tão alta como na sua memória. Ouvi-a
afirmar, enquanto se aproximava, cautelosa, para evitar tropeçar nas pedras ou
nas raízes.
- O meu nome não interessa.
Quando chegou perto dele, Mem
viu-lhe a cara. Estava mais velha com mais rugas e verrugas e muito mais
farripas de cabelo cinzento na testa, embora o pontiagudo nariz se mantivesse
idêntico.
Continuava feia e se a
tivesse visto pela primeira vez, Mem teria tido medo, mas agora ficara apenas
intrigado com aquele reencontro.
- Viveis aqui ? – perguntou.
A mulher sentou-se em frente
dele, e dela emanava um cheiro a âmbar, o mesmo que Mem sentira antes de
adormecer.
- Ninguém vive em Soure. Só há ursos e
lobos. Foi um risco cá passardes com o vosso jumento magoado e a carroça cheia
de carnes.
Explicou que era a fogueira
flamejante e os seus pés perfumados que afastavam os animais.
- Mas eles não têm medo de mim ao contrário
das pessoas.
Mem suspeitou da saúde dela,
sentindo um ligeiro desconforto.
- Sois leprosa? – perguntou.
Ela negou que vivesse em
gafarias e acrescentou:
- Não é disso que têm medo.
Um novo tremor percorreu
Mem.
- Sois uma bruxa?
Pela primeira vez a mulher
sorriu, mas era um sorriso conformado, como se a pergunta dele fosse previsível.
- O povo chama bruxa a quem
não entende.
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