sábado, outubro 03, 2015

Frei Teun, gordote e atarracado
Tocaia Grande
(Jorge Amado)




Episódio Nº 353














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Os carpinas, Lupiscínio, Guido e Zinho, ergueram no centro do descampado à meia distância entre o rio e o barracão, em frente ao local da feira, um cruzeiro de pau-brasil, monumental, de grande altura, obra de dar na vista, só comparável ao pontilhão.

Quem despontasse, vindo das cabeceiras do rio das Cobras ou da estação de Taquaras, de longe nos caminhos avistava o Santo Lenho assinalando a passagem por Tocaia Grande da primeira Santa Missão a estender até aquele fim de mundo a pregação da virtude e a condenação do pecado.

Uma larga plataforma de tábuas corridas foi armada diante do cruzeiro e nela os frades colocaram os materiais e os apetrechos para a missa, a bênção e os sacramentos de batismo e matrimónio.

Os frades revestiram-se com os hábitos talares para os ofícios divinos e os sermões.

Frei Theun pregou pela manhã, na eucaristia, Frei Zygmunt pregou à tarde, na hora da bendição. Os habitantes foram unânimes em considerar o sermão de frei Zygmunt por todos os aspectos superior ao do frade holandês. Não havia comparação.

Frei Theun, gordote e atarracado, falando português quase sem acento, demorou-se na bondade e na misericórdia de Deus, descreveu o  Paraíso, falou de suas belezas e benesses.

Magro e alto, cara cavada, mãos ossudas, misturando ao português termos alemães e expressões latinas, numa pronúncia de cão de caça, o alemão empolgou os ouvintes, pequena multidão ainda maior do que a reunida pelo Reisado de Sia Leocádia, no verão.

Seu tema foi o inferno. Belzebu, o anjo decaído, o pecado eo fogo a consumir os pecadores. Martelo de Deus, como o nome indicava, frei Zygmunt Gotteshammer obteve sucesso quase igual ao de seu Carlinhos Silva com os truques de prestidigitação. Um porreta, frei Zygmunt!

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Deu-se a coincidência - de coincidências estão cheios os romances, ainda mais a vida - que, no segundo e último dia da
Santa Missão, chegou a Tocaia Grande, procedente de Itabuna, em trânsito para a Fazenda da Atalaia, o doutor Boaventura Andrade Júnior, cada vez menos tratado pelo diminutivo familiar de Venturinha.

Vinha acompanhado por Ludmila Gregorióvna, sua amante - amante era o termo que o bacharel usava pois indicava fêmea nobre e cara, de alto coturno, dispendiosa, situada em alturas não atingidas por raparigas, mancebas, amásias, comborças, putada reles.

Ouriçada cabeleira cor de fogo, perfume forte de almíscar, nos trinques do traje inglês de montaria, calça-culote, égua das estrebarias do Czar da Rússia ou das cavalariças do Rei Salomão, como melhor disse o Turco Fadul, leitor da Bíblia.

Nos tempos dos barulhos, quando os encontros de grupos de jagunços eram acontecimentos corriqueiros e cada goiabeira escondia uma tocaia, os coronéis viajavam acobertados por grupos de cabras, havia sempre a possibilidade de um ataque.

Com o fim das lutas, a guarda se reduzira a um homem de confiança, rápido no gatilho. O coronel Boaventura Andrade, cuja vida estivera tantas vezes ameaçada, nos últimos anos fazia-se acompanhar apenas pelo negro Espiridião.

Por vezes Natário ia com eles: para conversar com o Coronel, acertar que fazeres, não na qualidade de capanga, como dantes.

Venturinha, porém, não dispensava em suas travessias entre
Itabuna e a Fazenda da Atalaia, ou para onde quer que viajasse, um séquito digno de um Basílio de Oliveira, de um Sinhô Badaró, de um Henrique Alves nos áureos tempos.

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