sexta-feira, outubro 02, 2015

Além de luterano, anarquista
Tocaia Grande
(Jorge Amado)

Episódio Nº 352





















O centro da feitiçaria se encontrava instalado na oficina do ferrador de burros, um réprobo.

Frei Zygmunt Martelo de Deus projectava levantar o ânimo dos fiéis durante os sermões, quem sabe conseguiria levá-los a destruir o ímpio altar erguido por detrás da forja para os monstruosos diabos africanos que os negros, libertos da escravidão através de conjuras e trampas da Maçonaria, chamavam de encantados e procuravam vestir com o manto luminoso dos bem-aventurados.

Sacrilégio!


15


Repousando do bárbaro - e delicioso! - jantar de frutas e caças, ao fim daquele primeiro dia de Santa Missão, frei Theun lastimou, condoído e compassivo, a sorte daqueles pecadores, vítimas da ignorância e do atraso, cujas almas estavam condenadas ao inferno sem que talvez o merecessem.

Era sobretudo a falta dos códigos morais, da rédea das leis, da contenção imposta pelas regras, que os levava à prática de tamanhos erros, a viver em estado de delinquência e culpa.

Seu Carlinhos Silva, falando alemão com fluência e pronúncia de letrado - um mulato sarará, imagine-se! Surpresas a que estão sujeitos frades mendicantes cm Santa Missão - , com voz pacata e afável, assim como quem não quer nada mas vai dizendo as coisas, defendeu o lugar e o povo do lugar.

Parecia um professor dando aula na cátedra de Weimar e frei Zygmunt o examinou com os olhos de suspeita. Com razão, pois o mestiço inocentou aquela gentalha de qualquer culpa.

Os habitantes de Tocaia Grande - disse ele - ali viviam à margem de ideias preconcebidas, desobrigados das limitações e dos constrangimentos decorrentes das leis, livres dos preconceitos morais e sociais impostos pelos códigos, fosse o código penal, fosse o catecismo.

Gente mais ordeira do que a de Tocaia Grande, apesar do nome e dos maus costumes, não havia em toda a região do cacau, no país dos grapiúnas.

E sabem por que, meus reverendos? Porque aqui ninguém manda em ninguém, tudo se faz de comum acordo e não por medo de castigo.

Se dependesse de seu Carlinhos Silva, jamais essa paz seria perturbada, esse viver feliz do povo de Tocaia Grande que, a seu ver, merecia com certeza o agrado de Deus, do verdadeiro.
 - Se vossas reverendíssimas me permitem opinar, eu lhes direi que aqui se encontra o procurado paraíso natural dos sábios...

Ergueu-se num supetão frei Zygmunt Gotteshamraer, Martelo de Deus, derrubando o prato de flandre, o rosário na mão como se fora um látego levantado contra o pecado e os pecadores e, em especial, contra o herege em sua frente.

Em Ilhéus haviam-lhe informado que esse mestiço e filho natural fora educado na Alemanha e tinha fumaças de doutor: inimigo da Igreja de Roma, era um infame luterano, talvez ainda mais pernicioso do que os macumbeiros, com certeza mais perigoso do que o maronita.

Símbolo do que existia de pior no mundo: arauto das infames ideias da Revolução Francesa, dos enciclopedistas, dos inimigos de Deus e da monarquia, dos petroleiros incendiários, de bomba em punho contra os imperadores e a nobreza, de punhal erguido para de novo rasgar o coração de Jesus Cristo.

Além de luterano, anarquista!

Site Meter