quinta-feira, outubro 01, 2015

Igreja e padre são coisas de mulher
Tocaia Grande
(Jorge Amado)

Episódio Nº 351




14

















Os frades, com o consentimento de seu Carlinhos Silva, haviam improvisado dois confissionários no depósito de cacau seco, um em cada extremidade do recinto.

Não havia a habitual separação entre confessor e confessando, mas as poucas mulheres que foram cumprir o sacramento -  o mais importante de todos na sapiente opinião de frei Zygmunt von Gotteshammer - não tinham pejo de olhar o padre na hora de despejar o saco de pecados, não sabiam, as infelizes, o que fosse pudor.

Poucas mulheres, nenhum homem. Igreja e padre são coisas de mulher, diziam os homens, os renegados. Criminosos de morte muitos deles, a começar pelo tal de Capitão, a cuja fama de crueldade e a cujo passado de crimes tinham ouvido medrosas referências nas palmilhadas léguas de chão do rio das Cobras.

Frei Theun e frei Zygmunt haviam reservado o primeiro dia da Santa Missão para um balanço na vida de Tocaia Grande: receber em confissão os pecadores, tomar conhecimento da situação do paganismo e da moralidade do lugar.

Tendo sido mínima a procura do confessionário, da penitência e da absolvição - a absolvição na voz de frei Zygmunt von Gotteshammer, o Martelo de Deus, tinha acento de censura e castigo,-  saíram os frades a saber de casa em casa, de pessoa em pessoa.

Regressaram à residência de seu Carlinhos Silva, onde estavam hospedados, Theun com o coração carregado de tristeza por ver tão menosprezada a lei de Deus - ah! os pobres infelizes!

- Zygmunt tomado de indignação e de horror, vibrando de cólera sagrada, ao constatar o estado de abominação em que viviam aqueles renegados: réus malditos!

Crianças sem batismo, filhos naturais concebidos no pecado, casais reproduzindo-se como animais, sem o consentimento e a bênção de Deus, a devassidão, o crime, o desconhecimento e a incúria pelas coisas da Santa Madre Igreja.

Maior que o casario erguido no núcleo do arraial - duas vielas e um beco -  era a podre aglomeração de casebres de barro batido e de choças de palha na Baixa dos Sapos, o puteiro na suja voz dos habitantes: a ele se referiam com acentuado orgulho, devido a suas dimensões, o maior daquelas bandas.

No outro lado do rio onde plantavam o necessário para a feira semanal, não ia melhor a moralidade, tampouco a devoção.

No novo habitat, os piedosos sergipanos, tementes a Deus, ao contacto com a impiedade grapiúna, desleixavam-se das obrigações para com o Senhor, perdiam o temor de Deus e se espojavam na lama dos abomináveis hábitos do lugar.

O árabe que ali comerciava, roubando pobres-diabos, residentes ou passantes, agiota dos piores, um degredado, não era propriamente maometano mas pouco faltava.

Longe de ser filho exemplar da Igreja de Roma, pertencia à seita oriental dos maronitas, pouco digna de confiança: para muçulmano faltava pouco.

Se vivesse na Espanha, nos bons tempos, não escaparia da espada cristã e abençoada de San Tiago Mata Mouros.
Quanto aos negros fetichistas, à frente o cínico ferreiro, sempre a rir, persistiam na eterna e perversa tentativa de conspurcar a pureza e a dignidade dos santos canonizados pelo Vaticano, misturando-os e confundindo-os com os demoníacos calungas das senzalas, ofertando-lhes animais em sangrentos sacrifícios.

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