Igreja e padre são coisas de mulher |
Tocaia
Grande
(Jorge Amado)
Episódio Nº
351
14
Os frades, com o consentimento de seu Carlinhos
Silva, haviam improvisado dois confissionários no depósito de cacau seco, um em
cada extremidade do recinto.
Não havia a habitual separação entre
confessor e confessando, mas as poucas mulheres que foram cumprir o sacramento
- o mais importante de todos na sapiente
opinião de frei Zygmunt von Gotteshammer - não tinham pejo de olhar o padre na hora de despejar o saco de pecados, não sabiam, as infelizes, o que fosse
pudor.
Poucas mulheres, nenhum homem. Igreja e
padre são coisas de mulher, diziam os homens, os renegados. Criminosos de morte
muitos deles, a começar pelo tal de Capitão, a cuja fama de crueldade e a cujo
passado de crimes tinham ouvido medrosas referências nas palmilhadas léguas de
chão do rio das Cobras.
Frei Theun e frei Zygmunt haviam reservado
o primeiro dia da Santa Missão para um balanço na vida de Tocaia Grande:
receber em confissão os pecadores, tomar conhecimento da situação do paganismo
e da moralidade do lugar.
Tendo sido mínima a procura do
confessionário, da penitência e da absolvição - a absolvição na voz de frei
Zygmunt von Gotteshammer, o Martelo de Deus, tinha acento de censura e castigo,-
saíram os frades a saber de casa em
casa, de pessoa em pessoa.
Regressaram à residência de seu Carlinhos
Silva, onde estavam hospedados, Theun com o coração carregado de tristeza por
ver tão menosprezada a lei de Deus - ah! os pobres infelizes!
- Zygmunt tomado de indignação e de
horror, vibrando de cólera sagrada, ao constatar o estado de abominação em que viviam
aqueles renegados: réus malditos!
Crianças sem batismo, filhos naturais
concebidos no pecado, casais reproduzindo-se como animais, sem o consentimento
e a bênção de Deus, a devassidão, o crime, o desconhecimento e a incúria pelas
coisas da Santa Madre Igreja.
Maior que o casario erguido no núcleo do
arraial - duas vielas e um beco - era a
podre aglomeração de casebres de barro batido e de choças de palha na Baixa dos
Sapos, o puteiro na suja voz dos habitantes: a ele se referiam com acentuado
orgulho, devido a suas dimensões, o maior daquelas bandas.
No outro lado do rio onde plantavam o
necessário para a feira semanal, não ia melhor a moralidade, tampouco a
devoção.
No novo habitat, os piedosos sergipanos,
tementes a Deus, ao contacto com a impiedade grapiúna, desleixavam-se das
obrigações para com o Senhor, perdiam o temor de Deus e se espojavam na lama dos
abomináveis hábitos do lugar.
O árabe que ali comerciava, roubando
pobres-diabos, residentes ou passantes, agiota dos piores, um degredado, não
era propriamente maometano mas pouco faltava.
Longe de ser filho exemplar da Igreja de
Roma, pertencia à seita oriental dos maronitas, pouco digna de confiança: para
muçulmano faltava pouco.
Se vivesse na Espanha, nos bons tempos,
não escaparia da espada cristã e abençoada de San Tiago Mata Mouros.
Quanto aos negros fetichistas, à frente o
cínico ferreiro, sempre a rir, persistiam na eterna e perversa tentativa de
conspurcar a pureza e a dignidade dos santos canonizados pelo Vaticano, misturando-os
e confundindo-os com os demoníacos calungas das senzalas, ofertando-lhes animais
em sangrentos sacrifícios.
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